Na hora da discussão você vê que a pessoa sequer leu o Estatuto da Criança e do Adolescente, que não tem conhecimento algum, que ela está reproduzindo um discurso que ela ouviu sabe-se lá de quem, e às vezes uma pessoa de cultura, que fala com autoridade. Eu sempre dou o exemplo do Ministro do Superior Tribunal de Justiça que veio fazer uma palestra no Encontro Nacional falando sobre Processo Penal e Direito Penal e lá pelas tantas ele falou que tinha vontade de rasgar o Estatuto da Criança e do Adolescente. Depois da exposição eu pedi a palavra e disse: “Ministro, eu gostaria que o senhor explicasse qual é a sua pretensão”. Claro que o Estatuto enquanto produto da visão humana está sempre sujeito a alterações, ao aprimoramento, lembrei Bachelar no sentido de que todo avanço científico pressupõe a retificação dos erros do passado e que, portanto, nós estaríamos abertos para sugestões. Agora ele dizer que queria rasgar folhas do Estatuto eu esperava que não fossem as folhas exatamente que prevêem o direito à saúde, à educação, à profissionalização, etc. Mas que de qualquer sorte, eu gostaria de saber quais seriam as folhas e ele disse “não é bem isso, claro, foi só uma força de expressão, eu não quis falar isso, é evidente, como é que eu vou rasgar folhas do Estatuto?” Aí eu disse que ele deve ter posição contrária a determinadas regras do Estatuto e que eu gostaria que ele indicasse quais são as regras em relação as quais ele não concorda, até para a gente anotar essas objeções e nessa perspectiva de aprimoramento da lei e tal. “Ministro, o senhor indique uma regra do Estatuto com a qual o senhor não concorda”, e ele não respondeu. Quer dizer, ali era o ministro do STJ como integrante de um Tribunal Superior do País falando com a voz do repórter policial de quinta categoria, de alguma coisa que se ouviu de algum lugar e que se reproduz sem ter o conhecimento da lei. Então essa é a primeira observação que eu queria fazer. Nós precisamos, na perspectiva da efetivação do Estatuto da Criança e do Adolescente difundir o Estatuto da Criança e do Adolescente. Nós precisamos buscar os espaços e eu também me culpo por isso, porque a gente fica esperando que o sujeito da rádio ou do jornal venha procurar, quer dizer, quando ele vem procurar a gente responde, quando na verdade nós precisaríamos ir às rádios, nós tínhamos que solicitar um programa lá “O Estatuto responde”. Quantas pessoas têm dúvida sobre questões relacionadas à adoção, sobre o alojamento conjunto, sobre questões relativas ao abrigo e por que não nós buscarmos em todos os espaços dos meios de comunicação social também a oportunidade de esclarecer à população acerca do Estatuto da Criança e do Adolescente? Acho que isso é algo inadiável. Anos depois nós estamos sofrendo, ainda, as conseqüências da falta da difusão adequada do Estatuto da Criança e do Adolescente nos meios de comunicação social,em primeiro lugar. E em segundo, no sistema educacional, porque o sistema educacional nesses últimos anos, 10, 12 anos, está formando pessoas que na época tinham 6, 7 anos e hoje estão com 19, 20 anos e que estão levando aquela mesma visão equivocada que dentro do sistema educacional foi passada a elas.
Então, os conselheiros tutelares, os conselheiros de direito,precisam participar junto ao sistema educacional de esclarecimentos acerca do Estatuto da Criança e do Adolescente e de discussões acerca do Estatuto da Criança e do Adolescente até na perspectiva de que o próprio Estatuto é instrumento importante para intervir positivamente no sucateamento em que se encontra hoje o sistema educacional e no descaso em que a escola pública foi colocada hoje em dia. Esses são dois aparelhos ideológicos do Estado, ideológicos nessa perspectiva de formar a ideologia, de interferir na personalidade das pessoas de modo que possam enxergar a sociedade em que eles vivem desta ou daquela forma. E mais do que isso, de estabelecer o papel que cada um pode desempenhar dentro dessa mesma sociedade. Então é fundamental, penso eu, e essa é a primeira observação que eu gostaria de deixar aqui. É fundamental que a gente tenha a ousadia de intervir em relação à difusão adequada do Estatuto da Criança e do Adolescente. Ir, sim, nos programas de rádio das nossas cidades e dizer que nós queremos um espaço diário de 15 minutos, meia hora, para tratar do Estatuto da Criança e do Adolescente. O Conselho de Direito quer responder as dúvidas da população, o Conselho Tutelar quer prestar contas da sua atuação. O Promotor de Justiça e o Juiz têm que estar lá esclarecendo à população do que é que diz a lei acerca dessa ou daquela situação. Aí, indo à frente, mas ainda pensando nesse aspecto, outra observação séria que eu gostaria de fazer é para superar um mito muito freqüente no Brasil que é aquele que diz que no Brasil há leis que pegam e leis que não pegam. É como se a lei fosse uma espécie de resfriado, de doença venérea que dependendo da situação você pega. Isso é trágico ao tempo em que se você for analisar quais são as leis que pegam e as que não pegam, acaba-se concluindo que as leis que não pegam são aquelas que dizem respeito exatamente aos interesses da grande maioria da população. São as leis de conteúdo social, são as leis de conteúdo genuinamente democrático, são essas que não pegam! Porque as leis que interessam aos grupos minoritários, aos detentores do poder econômico, do poder político,essas pegam. Eu sempre dou o exemplo de que se tivesse sido publicada hoje no Diário Oficial da União uma regra prevendo benefícios fiscais ou tributários para as grandes empresas, nenhum de nós teria dúvida de que essa lei pegaria, porque imediatamente o Departamento Jurídico dessas grandes empresas iriam com o Diário Oficial debaixo do braço tentar primeiro na esfera administrativa o cumprimento da lei. Se não obtivessem o cumprimento, ingressariam com medidas judiciais, requereriam a prestação da tutela jurisdicional para a garantia dessa lei. Então insisto, nós não podemos entrar nesse mito, e aceitar o mito de que é pela natureza das coisas que algumas leis pegam e outras, não. As leis que não pegam, não pegam por falta da intervenção, por falta da pressão popular, por falta de forças progressistas que busquem o cumprimento dessa mesma lei. E felizmente o Brasil já contempla no seu ordenamento jurídico inúmeros diplomas legais com esse caráter genuinamente democrático, como a lei que trata da proteção do meio ambiente, que trata da defesa do consumidor, que trata dos direitos das pessoas portadoras de deficiências, dos idosos, que fazem a defesa do patrimônio público. É necessários que essas leis não permaneçam letras mortas, não sejam tratadas como meras declarações retóricas, como singelos conselhos do legislador para o administrador e por isso mesmo entregues ao abandono. Quando se diz que uma lei não pega, e a observação aqui em relação ao Estatuto, abro um parênteses para dizer que a mais equivocada das críticas que se faz ao Estatuto da Criança e do Adolescente é querer dizer que o Estatuto é uma lei sem condições de efetividade. “Não, fizeram uma lei de primeiro mundo e querem aplicar num país subdesenvolvido. Isso não vai dar certo! Não tem como concretizar as regras do Estatuto da Criança e do Adolescente diante dessa inadequação da lei à realidade”. Eu digo que isso é absolutamente equivocado, eu digo que é desnecessário ou inapto imaginar um legislador francês apresentando um projeto de lei para dizer que a criança francesa tem direito à saúde, ou um legislador na Suécia apresentando um projeto de lei para dizer que a criança sueca tem direito à educação. Isso sim nos países desenvolvidos é absolutamente desnecessário porque lá o Estado cumpre com seu dever institucional indelegável de garantia do exercício desses direitos à população infanto-juvenil. Inadequado seria o Estatuto nesses países, tanto que nesses países desenvolvidos a doutrina que dá base teórica para a legislação desses países é a doutrina do direito penal do menor, quer dizer, a idéia da intervenção da Justiça somente nos casos em que o menor adolescente faz com que seu comportamento acabe adequado a uma norma penal, quando o comportamento dele corresponde a um crime ou a uma contravenção, porque as outras questões que dizem respeito à efetivação de direitos elementares essas todas já estão garantidas. Então, o que eu gostaria de dizer, afastando essa idéia equivocada de que o Estatuto não teria condições de efetividade, de que quando se diz que essa lei não pegou, isso é culpa daqueles que foram incumbidos da defesa, da garantia de efetivação dessa mesma lei. E a partir daí eu inicio observações sobre o chamado sistema de garantia da área da Infância e da Juventude.Em cada município, do mais distante, estão lá os conselheiros tutelares fazendo embate com aqueles que violam os direitos da criança e do adolescente. O Conselho de Direitos fazendo diagnóstico da situação da Infância e da Juventude e propondo soluções e a justiça da Infância e da Juventude atuando de modo a produzir uma alteração positiva na realidade social. Eu digo isso porque eu sou daqueles ainda e, por isso eu tenha sido escolhido para fazer esta exposição, até, e credito, por ser o mais velho daqueles que continuam participando efetivamente. Eu já tenho o registro histórico das coisas e eu vivi a época de vigência. Fui promotor de justiça aqui em Curitiba na Vara de Infratores na época do Código de Menores. Eu experimentei absoluta impotência da justiça no sentido de dar uma resposta positiva àquelas crianças e adolescentes que compareciam perante a justiça de menores e a impotência decorrente do fato de que à época o Estado estava imune pelo Código de Menores, o Estado estava imune da sua responsabilidade de promoção social das crianças e adolescentes e das suas família. E pior, diante dessa situação que não se podia exigir do Estado o cumprimento do seu papel institucional, o que se fez?
Olympio de Sá Sotto Maior Neto
é procurador de Justiça, membro da Comissão Técnica e Científica da Associação de Magistrados e Promotores de Justiça da Infância, Juventude e Família do Paraná e coordenador estadual da Associação Brasileira de Magistrados e Promotores de Justiça da Infância e Juventude.