No segundo semestre do ano de 2006 e primeiro semestre do ano de 2007 fui de vocês a professora de direito processual penal.
De nossa última aula para cá, dois anos se passaram até que eu fosse escolhida como paraninfa da turma. A honrosa escolha me comoveu.
Cuidando dos significados que a palavra admite, sou, além de madrinha da turma e nessa qualidade, protetora -, a testemunha da solenidade na qual vocês recebem do Estado, por meio da Faculdade de Direito do Centro Universitário Curitiba, o reconhecimento de que estão capacitados para as funções que o bacharelado em Direito permite.
Nessa importante função de lhes dirigir as palavras de despedida, não pretendo o ineditismo, mas a reafirmação. Entre tantas recordações que estes atos solenes e tão cheios de emoção trazem, três me vêm à memória:
Na primeira, lembro-me de como o paraninfo de minha formatura também pela Faculdade de Direito de Curitiba, o professor e desembargador José Maurício Pinto de Almeida, iniciou o seu discurso.
Disse ele: “é preciso saber ser, é preciso saber estar”, e a partir daí desenvolveu um encadeamento de palavras que acalmava a ansiedade de mais de cem bacharéis emocionados e assustados com as novas exigências que se revelavam. Mas eu ainda me perguntava como “ser” de modo tal a sempre saber como “estar”…
Daí que, no jantar de minha formatura, num caderno feito especialmente para que os convidados deixassem uma mensagem de carinho e felicitações, minha mãe teve a sensibilidade de escrever uma frase que lera em algum lugar, como se soubesse que eu precisava e conseguiria ordenar as idéias para me posicionar diante de uma nova condição as mães sempre sabem o que dizer…
Escreveu ela: “Você não tem um caminho novo; o que você tem de novo é a forma de caminhar”. Então, sem deixar de notar a realidade do caminho, comecei a caminhada.
E no momento em que escrevia as palavras que lhes digo esta noite, também me lembrei do discurso de paraninfo do nosso coordenador do curso de direito, professor Roberto Di Benedetto, proferida numa formatura do ano que passou.
Com a inspiração que a sua cultura e sensível perspicácia lhe identificam, disse o prof. Benedetto que aqueles bacharéis, naquela noite, deixavam de ser infantes. Lembrou-lhes que infante era aquele ainda sem fala, e que o bacharelado em Direito lhes permitiria o exercício de profissões por meio das quais, com o uso da palavra pública, eles poderiam mudar a realidade social. De fato, no Direito a força bruta é vencida pelas palavras. Essa, afinal, é a sua razão de existir.
Bem, não vou dizer que apenas no discurso do professor Benedetto eu consegui articular as idéias do meu estimado paraninfo com as palavras da minha mãe para definir como saber ser e saber estar, mas seguramente elas, aqui, me servem para relembrar a vocês aquilo que vocês todos já sabem: as lições e os discursos da academia de ensino superior municiaram vocês com as ferramentas necessárias para tornar concreto o que é abstrato, ou seja, num cenário de desrespeito à dignidade humana e abusos de poder, vocês adquirem condições para tornar reais as promessas formalizadas numa Constituição que assegura a democracia e a igualdade, privilegiando a temática dos direitos e das garantias individuais e sociais.
Convido-os para olhar uma parte do cenário do caminho que devem começar a percorrer promovendo mudanças na condição de profissionais do Direito. Vamos então começar pelo que está instituído no plano formal, abstrato.
Lendo a Constituição brasileira, a lei maior que estrutura o Estado e a sociedade, vemos que já no preâmbulo o legislador constituinte tornou clara a intenção da instituição de um Estado Democrático, destinado assegurar o exercício dos direitos sociais e individuais, a liberdade, a segurança, o bem-estar, o desenvolvimento, a igualdade e a justiça como valores supremos de uma sociedade fraterna, pluralista e sem preconceitos, fundada na harmonia social e comprometida, na ordem interna e internacional, com a solução pacífica das controvérsias (…).
Nos prime,iros capítulos do texto legal, a intenção é reafirmada na forma de fundamentos e princípios a serem observados, objetivos a serem buscados pelos Poderes e pela sociedade. A dignidade da pessoa humana é definida como princípio vetor da atividade estatal e de regulamentação das atividades privadas.
Olhando assim, podemos pensar que nascemos no país ideal. No mais evoluído politicamente. No entanto, não será difícil perceber na vida real e nas lições doutrinárias as afirmações no sentido de que a democracia e a soberania sem as quais não há cidadania possível -, para funcionarem, exigem um mínimo de cultura política, e essa cultura, via de regra, é desenvolvida dentro das academias de ensino superior.
Olhando agora para alguns aspectos da realidade, vemos que, segundo dados oficiais, a população brasileira, no senso de 2007, era de 183 milhões de habitantes estima-se que hoje seja de 189 milhões de habitantes; 34% são analfabetos ou semi-analfabetos; 3,4% cursam o ensino superior e 0,18% chegam ao mestrado ou doutorado.
Um em cada dez brancos com mais de 25 anos entram para a faculdade ao passo que, entre os negros, esse número é de um para cada cinqüenta olha a igualdade aí! E apenas 42% das pessoas que entram numa faculdade conseguem concluí-la.
Distantes das promessas da Constituição, somos assaltados pela corrupção e vivemos aterrorizados pela violência. O Brasil tem a oitava maior população carcerária do mundo. Entre os anos de 2000 até 2008 essa população aumentou em 89%.
Mas não fiquem tão decepcionados com esses números. No índice de desenvolvimento humano que espelha, além da renda per capita, a longevidade da população brasileira e nível de escolaridade avaliado pela taxa de alfabetização de adultos e pela taxa de matrícula nos três níveis de ensino o Brasil está em 70.º lugar, e por isso à frente de outros 107 países. Eis o cenário do caminho, meus afilhados!
Vocês compõem a diminuta parcela da população brasileira que conclui um curso superior, e eu tenho a certeza de que na Faculdade de Direito de Curitiba vocês aprenderam a constituir a consciência política da preocupação coletiva, necessária à luta para garantir que a democracia e a soberania, nesse nosso país, não sejam tratados como valores que sucumbem à irresistível força de interesses conjunturais dos segmentos sociais dominantes, que as controlam e manipulam sem devotar-lhes nenhum apreço.
Vocês colam grau no curso de Direito, e esta solenidade, além de festiva, traz no seu ritual de passagem um gesto político importante.
Assustados? Não fiquem… Nas decisões que serão convocados a tomar tantas vezes no caminho da vida façam-se a pergunta para a qual vocês já conhecem a resposta. Perguntem-se: de que maneira devo conduzir a minha vida para que, no final do meu caminho, eu não me envergonhe dos passos que dei?
Na resposta, seguramente não apenas as lições dos bancos acadêmicos lhes virão. Os valores que receberam na família também devem lhes guiar no sentido do bem e do justo.
O cenário não é composto apenas por visões de desalento, e se vocês não conseguirem crer na existência do amor tolerante, da solidariedade e na realização da Justiça com atos gentis e com responsabilidade social, sejam generosos com os seus futuros: não se aviltem cedendo ao encantamento de facilidades alcançadas ao custo da derrota dos valores mais caros que lhes foram ensinados.
Vou me convencer de que nenhuma boa lição será perdida. Acredito firmemente que seus pais de sangue ou de afeto hoje olham para vocês e conseguem sentir o que quis dizer Helena Kolody neste hai kai: “Do longo sono secreto, na entranha escura da terra, o carbono acorda diamante.”
Vocês aprenderam a ser, e agora, fazendo o uso da palavra pública, decidem como querem estar. Não esqueçam, todavia, que nenhum de nós nesse país tem apenas problemas individuais, e o estímulo material não pode ser considerado como única ou principal alavanca das iniciativas profissionais.
Trabalhem também por amor fraterno, por solidariedade e pela vonta,de de mudar o cenário do caminho daqueles cujos passos são dificultados pelas carências materiais e culturais.
Lembrem-se: a vocês está sendo conferida a possibilidade de trabalhar pela democracia, pela igualdade e pela cidadania. Suas palavras devem ser compreendidas e assimiladas pelas pessoas que vão sentir os seus efeitos na realidade social.
O direito tem sua linguagem própria, mas no uso da palavra não sejam prolixos ao ponto de fazer parecer que não sabem exatamente como expressar suas pretensões; tampouco sejam rebuscados demais para fazer parecer que o direito somente pode ser compreendido por uma casta.
Estudem sempre, lembrando que o conhecimento é um bem perecível. Finalizo lembrando as palavras de um revolucionário. Disse Che Guevara que “o conhecimento nos faz responsáveis”. Esse mesmo revolucionário também disse que “os poderosos podem matar uma, duas até três rosas, mas nunca deterão a primavera.”
Por isso mesmo, meus afilhados, convido-os para mudar o cenário de nosso caminho cultivando aquelas rosas brancas de que falava o mártir da independência cubana, José Marti:
“Cultivo uma rosa branca
Em julho como em janeiro,
Para o amigo verdadeiro
Que me estende sua mão franca.
E para o mau que me arranca
O coração com que vivo,
Cardo ou urtiga não cultivo:
Cultivo uma rosa branca.”
Assim, mesmo num cenário de dificuldades provenientes da falta de seriedade, solidariedade e humanidade, cultivem sempre suas rosas brancas. Com as bênçãos de Deus, sejam firmes e bons nos novos passos do caminho que começam a percorrer.
Obrigada!
Discurso de paraninfa aos novos bacharéis da Faculdade de Direito de Curitiba proferido em 23 de julho de 2009 no Teatro Guaira (Turma “Professor Marcus Vinícius Corrêa Bittencourt”)
Márcia Leardini é professora de Direito Penal e Processual Penal na Faculdade de Direito de Curitiba.