Vez por outra, vêm à tona notícias de rebeliões em presídios ou em distritos policiais, quase sempre acompanhadas daquelas imagens dantescas de presos amontoados como bichos em celas superlotadas. Em alguns Estados da Federação, como o de São Paulo, houve um esforço muito grande nos últimos anos para retirar os presos dos distritos policiais e transferi-los para presídios novos, até mesmo separando os presos definitivos dos provisórios nos chamados Centros de Detenção Provisória (CDPs).

continua após a publicidade

Pouco tempo se passou e, no entanto, já se começa a ouvir que presos definitivos são mantidos junto com presos provisórios. E pior, que alguns distritos policiais voltaram a ter presos em suas carceragens.

Isso mostra que a população carcerária é como um câncer: a construção de mais presídios pode até extirpar o mal por algum tempo, mas logo se sentem as consequências da metástase e o problema da superpopulação volta a surgir.

Qualquer observador mais ou menos atento percebe que a política focada apenas na construção de presídios não tem como dar certo. Mesmo obedecendo aos regimes da lei (fechado, semiaberto e aberto), é possível adotar medidas administrativas de ressocialização olhando o preso na sua individualidade.

continua após a publicidade

Para isso é preciso diagnosticar o perfil da população carcerária, o que o tecnicismo jurídico acabou abandonando ao longo do século 20, calando, infelizmente, vozes positivistas, como a do grande jurista Roberto Lyra, extremamente úteis na questão da execução da pena.

A individualização da pena, tal como prevista na Constituição federal, exige conhecer as individualidades, o que o nosso sistema não passa nem perto de fazer. Pior, iguala todos os presos pelo que há de pior. Como não existe nenhum exame do grau de periculosidade de cada preso para melhor adequar o cumprimento da pena, a solução mais fácil é presumir que todos são perigosos na mesma medida. Como a própria desumanidade e a injustiça da generalização são imediatamente sentidas por quem trabalha no sistema, algumas burlas acabam sendo toleradas, de modo que o sistema continua cruel com quem não precisa e ainda se torna fraco demais com quem precisa ser forte. Quando se generaliza um tratamento rigoroso demais, o próprio sistema germina meios de mitigá-lo.

continua após a publicidade

O exame criminológico, ressuscitado recentemente pelo nosso ordenamento, só serve para impedir arbitrariamente alguns presos de obterem progressão de regime e outros benefícios. Jamais é feito para separar os presos segundo critérios pessoais, como primariedade, natureza do crime cometido, idade, antecedentes e contexto social, entre outros, e dar a cada um o tratamento adequado para sair melhor do que entrou.

Como não há mecanismos de diferenciação, o sistema acaba sendo cruel demais com quem não precisa, favorecendo, pela própria massificação da pena, aqueles que realmente precisam de medidas de segurança (lato sensu). Se o sistema fosse capaz de avaliar individualmente cada preso, perceberia em vários deles – até em razão da natureza do crime que cometeram – nenhuma propensão à fuga (basta ver que nas chamadas saidinhas temporárias do semiaberto apenas uma ínfima parcela, menos de 10%, segundo dados da Secretaria de Administração Penitenciária, não retorna à prisão depois do feriado) ou nenhum risco de continuarem delinquindo de dentro do presídio (presos sem personalidade violenta e sem relação com o crime organizado).

Isso significa que, para uma parcela da população carcerária, o gasto com presídios e muros fortificados é de todo inútil, bastaria uma casa provida de mínima vigilância para fazer valer as regras do regime fechado (sem falar na contaminação do preso que não tem personalidade criminosa e passa a tê-la pela convivência com os diplomados no crime).

Ao mesmo tempo que a separação entre presos perigosos e não perigosos protege o delinquente ocasional do bandido contumaz, permite uma vigilância muito maior do detento que realmente precisa ser vigiado. É que a massa carcerária dificulta a identificação dos elementos perigosos, que, por causa disso, ganham maior liberdade de atuação dentro do cárcere. Sem os cordeiros os lobos perdem força. Em outras palavras, nosso sistema prisional é a nossa mais vergonhosa mentira, é cruel com quem não é essencialmente ruim e leniente com quem oferece perigo não só fora, como também dentro do sistema.

Sintoma disso é o fato de que o sistema consegue um grau de unanimidade singular: desagrada a todos ao mesmo tempo.

Deixa perplexos, de um lado, os profissionais das áreas jurídicas e as entidades que trabalham em defesa dos direitos humanos, tamanho o desrespeito à dignidade da pessoa humana do encarcerado, e, de outro, deixa indignada a população em geral, que acusa o sistema prisional de ser leniente demais, uma colônia de férias para a bandidagem ou coisas do gênero, levando o Poder Legislativo a editar leis de pânico que prometem melhorar o problema aumentando o rigor das penas e endurecendo o tratamento dispensado ao preso.

Ou vivemos numa sociedade completamente esquizofrênica ou alguma coisa está errada. Como é possível haver discursos tão antagônicos sobre o mesmo problema? A verdade é que estão todos certos. A sociedade, no seu todo, está sã. Esquizofrênico é o sistema.

O equilíbrio só será alcançado quando cada cidadão preso puder ser olhado no universo amplo e complexo da sua individualidade. Isso é plenamente possível de ser feito sem ofender o princípio da igualdade e da legalidade, mas exige uma gama de profissionais capacitados trabalhando (como psicólogos, antropólogos, sociólogos, assistentes sociais e profissionais do Direito).

Barato pode ser que não seja, mas deve sair mais em conta do que entulhar a nossa paisagem campestre de muros fúnebres de concreto acinzentado.

Fábio Tofic Simantob é advogado criminalista, diretor do Instituto de Defesa do Direito de Defesa.