Ao impedir a liberdade provisória, mesmo quando não preenchidos os requisitos da prisão preventiva, os idealizadores do Estatuto do Desarmamento, de certa forma, procuraram inserir em seu texto o mesmo tratamento processual estabelecido para os crimes hediondos (artigo 2.º, inciso II, da Lei n.º 8.072/90), o que ofende o princípio da igualdade.
Os artigos 16, 17 e 18 do Estatuto cuidam de crime de perigo, enquanto os delitos definidos como hediondos são crimes de dano material. Adotado o princípio da ofensividade, por certo que estes últimos trazem ao bem jurídico ofendido uma lesão significativamente maior em relação aos crimes de perigo. Por isso, as penas dos crimes hediondos são bem maiores que as reservadas para os crimes de perigo.
Assim, considerada a tipificação de cada delito, os crimes hediondos e aqueles definidos nos artigos 16, 17 e 18, da Lei 10826/03 não podem ter o mesmo tratamento processual no que tange ao cerceamento cautelar da liberdade do agente.
Recomenda-se razoabilidade nas elaborações legislativas.
No Direito Penal impõe-se, por força constitucional, a observação do princípio da igualdade não apenas perante a lei, mas também através da lei, o que implica numa vinculação do legislador a estabelecer a todos os cidadãos um tratamento de igualdade em sentido material. É profundamente desigual tratar crimes de conteúdo material distinto de maneira igual. Há, assim, proibição do arbítrio, uma proibição de tratamento igual para coisas distintas, sem uma justificação razoável, segundo critérios de valores estabelecidos pelo contrato social.
Por outro lado, identificada a desigualdade de tratamento através da lei imposta pelo legislador, há que se considerar ainda sua implicação e ofensa ao princípio da separação entre os Poderes.
Evidente que para ser garantido o princípio da igualdade formal e material, impõe a imparcialidade e independência do Poder Judiciário em relação aos demais Poderes do Governo.
Inserindo no sistema jurídico um vínculo potestativo, os Poderes Legislativo e Executivo afastaram o vínculo limitativo do sistema e cercearam a atividade jurisdicional na medida que impedem o Poder Judiciário de manifestação plena sobre o direito de liberdade da pessoa.
Por certo, a exclusão da possibilidade de manifestação do Poder Judiciário ofende a plenitude do Estado Democrático de Direito tornando inválida sua legitimidade.
Além do que a liberdade do homem é direito fundamental. Em contraposição, para limitá-la, o Estado, por meio do Poder Judiciário, deve fundamentar o ato coercitivo que apenas pode ser aplicado nos limites da lei. Esta deixa evidente que o direito fundamental à liberdade apenas pode ser restringido, antes da pena definitivamente aplicada, quando presentes os pressupostos da prisão preventiva (artigo 312 do CPP).
Esta análise não pode ser subtraída do Poder Judiciário, sob pena de ofensa ao princípio da separação e equilíbrio dos Poderes, e mais, de se negar ao cidadão o acesso concreto a um julgamento justo e independente, o que ofende o artigo 5.º, inciso XXXV, da Constituição Federal.
Nem se diga que o artigo 5.º, inciso LXVI, da Carta Magna, permite que a lei regule a prisão provisória, a significar que o legislador ordinário pode permiti-la ou não.
Este prisma de discussão está relacionado com os crimes hediondos e não serve para a hipótese presente. Os crimes previstos nos artigos 16, 17 e 18 do Estatuto do Desarmamento não são crimes equiparados a hediondo. Quando a Constituição restringe benefícios o faz de maneira expressa, como ocorre com os crimes hediondos: inafiançáveis e insuscetíveis de graça ou anistia (artigo 5.º, XLIII).
Portanto, o referido artigo 21 da Lei 10826/03 ao ofender a independência dos Poderes e vedar ao cidadão o acesso ao Judiciário para garantia de sua liberdade individual, mostra-se desvinculado dos princípios maiores inseridos em nossa Constituição.
Ademais disso, se "a prisão fundada em decisão condenatória recorrível, quando não motivada em razões de ordem cautelar, substantiva execução provisória de pena não definitivamente aplicada, o que ofende o princípio da presunção de não-culpabilidade" (STF HC 85591/SP, Rel. Min. Sepúlveda Pertence, Plenário 25.5.2005), muito mais ofensa há ao princípio da presunção de inocência (não-culpabilidade) quando se nega liberdade provisória ao sujeito que, alvo de um simples inquérito policial por transportar uma pistola de uso restrito na mala do seu automóvel, não apresenta qualquer requisito que impõe a cautela da prisão preventiva.
Assim é que se não estiverem presentes os requisitos do 312 do CPP demonstrando a cautelaridade justificadora da limitação do direito fundamental de liberdade, a liberdade provisória é direito que se impõe.
Os julgadores não podem fechar os olhos quanto a essa clara inconstitucionalidade do artigo 21 da Lei 10826/03.
Edson Pereira é advogado, pós-graduando em Direito e Processo Penal pela Universidade Gama Filho UGF, bacharel em Direito pela Universidade Iguaçu UNIG edsonpsjr@yahoo.com.br