Se alguém ficar doente daqui a cinco, dez ou mais anos, quem saberá dizer se o mal decorre do consumo, manuseio ou contato com a soja transgênica da safra de 2004, cujo plantio foi autorizado na semana passada pela medida provisória assinada pelo vice-presidente no exercício da Presidência da República, José Alencar?
A pergunta parece inútil provocação, mas é pertinente. No texto da medida provisória mais polêmica de que se tem notícia até hoje – e que revelou um vice-presidente, além de “pobre coitado”, indeciso e atabalhoado -, um dispositivo responsabiliza o produtor por eventuais danos provocados pela soja em questão. Maria José Amstalden Sampaio, um especialista da Secretaria de Propriedade Intelectual e Regulamentação da Embrapa, garante que os brasileiros já consomem soja modificada (em produtos vindos dos Estados Unidos e da Argentina) há pelo menos cinco anos. Mesmo que se descubra que uma eventual doença seja proveniente do consumo de produtos geneticamente modificados, saber qual o grão responsável, e de que safra é ele, eis aí um desafio que, até onde se imagina, será simplesmente insuperável.
Portanto, a letra da MP de José Alencar, pelo menos nessa parte, é tão inútil quanto inócua. Os agricultores gaúchos, que já comemoram a vitória de poder continuar plantando em liberdade o que vinham fazendo na clandestinidade, não devem ficar preocupados com a parte que lhes impõe a responsabilidade pelo que der e vier. A menos que se estabeleça no País uma medieval caça às bruxas.
O termo de responsabilidade é tão absurdo quanto o argumento usado pelo vice-presidente em socorro às suas dúvidas. Segundo ele, chegou-se à conclusão de que o governo estava diante de um fato consumado, isto é, a soja “do mal” já vinha sendo plantada e, por isso, não havia outro caminho a ser tomado. Baseados nesse comportamento “jurisprudencial”, os defensores da liberação da maconha podem, agora, iniciar movimento pela legalização do plantio da erva. Afinal, esse é um fato consumado há bem mais tempo…Sofismas à parte, é preciso que se entre um pouco mais no estranho comportamento demonstrado pelo governo durante o primeiro tempo desse debate que, seguramente, haverá de continuar por muito tempo. E, de certa forma, ele justifica toda a indecisão de José Alencar que, passada a borrasca maior, diz agora que tem vontade (livre de qualquer medo) de comer soja transgênica. O presidente Lula precisa ter uma conversinha com alguns de seus auxiliares mais diretos, como a ministra Marina Silva, que se demonstram movidos mais por paixões e aparências que por convicções científicas. Inconformada com a liberação do plantio, mesmo que cheio de condicionamentos, ela saiu às ruas vestida de preto, em lutuoso protesto ao lado da Liga Campesina. Outros, altos funcionários do Ministério da Agricultura, trocaram o nome da pasta onde trabalham para “Ministério Monsanto”, numa alusão à multinacional que detém alguns segredos da transgenia. Padronizar um comportamento de governo em torno do tema é o mínimo esperado, de preferência o mais distante possível desse torvelinho de paixões advindas da ideologia.
Depois, também seria importante tentar uma afinada no que pensam e fazem os governos estaduais, isoladamente. O Paraná, por exemplo, quer proibir tudo e já caminha para construir legislação autônoma nesse sentido. Como se fosse possível erguer uma barreira entre territórios (entre o Brasil e a Argentina, por exemplo, deu no que deu)! Somos uma federação, é claro, e os estados gozam de alguma independência. Mas, como em outras questões relativas à saúde, seria recomendável aqui um procedimento semelhante, até por razões de segurança alimentar (como se alega), muito mais que por razões comerciais. E é isso e muito mais que se espera seja resolvido no Congresso Nacional, agora que ele se vê obrigado a analisar essa atabalhoada medida provisória com suas inúteis responsabilizações.