Dolo eventual: aspectos formais e materiais

A doutrina distingue inúmeras categorias de dolo: dolo direto e indireto, dolo natural e normativo, dolo genérico e específico. Enfim, na medida em que variam os critérios, alteram-se, na mesma proporção, as espécies de dolo. Entrementes, existe uma modalidade de dolo que sempre causa celeuma na doutrina o dolo eventual.

Com efeito, a definição de dolo eventual apresenta contornos tênues que, por vezes, se confundem na zona limítrofe e fronteiriça com a culpa consciente. Trata-se, antes de tudo, de uma dificuldade terminológica. Sem embargo, o legislador foi infeliz ao usar a expressão assumir o risco, para se referir ao dolo eventual. De fato, assumir o risco é uma postura mental que nem sempre expressa, com a precisão desejada, o conteúdo do dolo eventual.

Não obstante, boa parte da doutrina, em vez de instrumentalizar o conceito, gizando contornos mais nítidos à definição, apresenta fórmulas pleonásticas, incorrendo no mesmo erro do legislador. Não raro, o bacharel sai da academia sem saber o que vem a ser, efetivamente, o dolo eventual, já que a doutrina repete o infeliz enunciado legislativo que tenta expressar o seu conceito pela atitude de ?assumir o risco?. Trata-se de uma equação vazia. O critério da ?assunção do risco? não fornece balizas objetivas para o cotejo com a culpa consciente. Destarte, urge que a dogmática penal forneça critérios objetivos para concretizar a definição de dolo eventual.

Nesta seara, destaca-se a lição do professor Juarez Cirino dos Santos, com inspirações na dogmática alemã de Claus Roxin. Segundo o referido autor, a definição de dolo eventual deve ser trabalhada em dois níveis: (a) o nível intelectual; e (b) o nível emocional do agente.

No plano intelectual, disserta o ilustrado autor, o dolo eventual se caracteriza ?por levar a sério a possível produção do resultado típico?.

No plano emocional, afirma o aludido jurista, o dolo eventual se distingue ?por conformar-se com a eventual produção desse resultado às vezes, com variação para as situações respectivas de contar com o resultado típico possível, cuja eventual produção o autor aceita?.

Assim, com ferramentas epistemológicas singelas (porém, eficazes), o professor Cirino dos Santos fornece uma definição mais palpável e sólida do que o abstrato parâmetro da ?assunção do risco?. Em resumo, o dolo eventual é definido em duas variantes: no plano intelectual, representa a atitude de levar a sério; e, no plano emocional, designa a postura de conformar-se com o eventual resultado.

Com esse critério, é possível diferenciar dolo eventual e culpa consciente. Isto porque, na culpa consciente, o plano intelectual é preenchido pela leviandade do agente e no plano emocional pela confiança do sujeito. Ou seja: na culpa consciente o agente é leviano em relação à produção do possível resultado e, além disso, confia na evitação do resultado. Assim, dolo eventual e culpa consciente se distinguem nos dois planos: pelo critério intelectual, levar a sério é o contrário de ser leviano; pelo critério emocional, conformar-se com é o antônimo de confiar na evitação do resultado (CIRINO DOS SANTOS, Juarez. A Moderna Teoria do Fato Punível. Freitas Bastos, 2000, pp. 70-71).

Há quem rejeite a existência da figura do dolo eventual. Entretanto, é forçoso reconhecer que o dolo eventual pode ser aceito, enquanto categoria dogmática na teoria do crime. No aspecto conceitual, o dolo eventual consegue subsistir às intempéries epistemológicas, podendo ser admitido como instituto autônomo, localizando-se na região limítrofe entre a culpa consciente e o dolo direto.

No entanto e aí surge o problema o tratamento formal e a resposta material parecem demasiado rigorosos, na medida em que equiparam dolo eventual e dolo direto.

O tratamento processual dispensado ao dolo eventual não parece ser o mais adequado. A legislação processual trata o dolo eventual de uma forma extremamente nociva ao agente, equiparando o dolo eventual com o dolo direto. Assim, o agente que comete homicídio com dolo eventual acaba recebendo o mesmo tratamento processual do agente que comete homicídio com dolo direto: o rito do Tribunal do Júri. Ora, quer parecer, salvo melhor juízo, que a simples atitude mental de levar a sério e se conformar com o resultado (dolo eventual) não pode ser equiparada à pretensão dirigida ao resultado típico (dolo direto). São posturas mentais completamente diferentes. Essa diferença abissal exige um tratamento processual distinto. É cediço que a competência do júri para julgar crimes dolosos contra a vida seja assegurada por disposição de status constitucional (art. 5.º, XXXVIII, alínea ?d?). Apesar disso, o ideal seria que o legislador inaugurasse um meio termo, um caminho processual intermediário, que não fosse tão rigoroso quanto o Tribunal do Júri, mas que não fosse igual ao procedimento usado nos crimes culposos. Realmente, o simples fato de se sentar no malsinado banco dos réus, para se submeter ao Júri Popular, já estigmatiza o indivíduo, cunhando cicatrizes indeléveis na moral e no espírito do acusado que as carregará para o resto da vida, como um anátema. Parece extremamente danoso e desnecessário submeter o autor de um homicídio praticado sob dolo eventual ao suplício humilhante de se expor no banco dos réus, como um assassino, quando, na verdade, muitas vezes, o seu ato de tirar a vida de outrem não passou de um acidente indesejado (muito embora ele tenha levado a sério e se conformado com o resultado, não significa que ele tenha desejado). Por uma questão de política criminal, urge que o legislador encontre alternativas para se corrigir esse desnecessário flagelo.

No campo do direito material, embora o dolo eventual possa ser admitido como categoria conceitual autônoma, urge que o legislador estabeleça critérios para mitigação da pena a ser aplicada. Além da equiparação no tratamento processual, o ordenamento pátrio promove a equiparação na resposta penal entre dolo direto e dolo eventual o que deve ser corrigido. A simples graduação das circunstâncias judiciais na primeira fase de aplicação da pena (art. 59 do Código Penal) não satisfaz a necessidade de distinção coercitiva entre a punição do dolo direto e a reprimenda do dolo eventual. Seria interessante estudar a possibilidade de se incutir na parte geral do Diploma Penal uma minorante referente ao dolo eventual, a ser aplicada na terceira fase da dosimetria. Outra proposta de mudança material reside na nomenclatura usada para designar a postura mental de levar a sério e conformar-se com o resultado. Se a expressão dolo eventual fosse substituída por outra nomenclatura qualquer, como eventualidade delitiva, o Tribunal do Júri perderia a competência para julgar pessoas que apenas levaram a sério e se conformaram com a morte de um terceiro, sem que isso significasse que tenham desejado o resultado funesto. A mudança material de nomenclatura teria repercussões formais de tratamento.

Adriano Sérgio Nunes Bretas é advogado criminal em Curitiba. bretasadvocacia@yahoo.com.br

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