Numa sociedade constituída por seres falíveis e imperfeitos, requer-se necessariamente de sistemas e instrumentos que garantam a ela uma existência razoavelmente pacífica. Neste contexto, surge então o Estado como aquele que recebe, dos indivíduos que o formam, o poder de promover tais condições sócio-existenciais. Para tal, optou ele proteger determinados bens jurídicos através de um sistema de criminalização de condutas, cujo cometimento acarretam em punições. Em síntese, a escolha estatal para o controle social se dá por meio do Direito Penal.

Todavia, alerta Giuseppe Bettiol que todo aquele que se dedica ao estudo da Ciência Penal deve necessariamente questionar os fins, efeitos e motivos da pena. Caso contrário, atuará o penalista “(…) apenas no meio das concepções formais fantasmagóricas, que poderão satisfazer um aspecto ou uma parte do intelecto humano (e precisamente o intelecto abstrato), mas deixarão insatisfeitas exigências bem mais importantes do homem, que não é só pensamento abstrato mas pensamento enraizado em carne e sangue” (BETTIOL, Giuseppe. Direito penal. Vol. II. Traduzido por Paulo José Costa Júnior et alii. São Paulo : Revista dos Tribunais, 1976. p. 78).

Neste espírito, uma acurada análise do programa estatal para se lidar com problemática criminal, revela uma vastíssima discrepância entre os fins supostamente buscados pela lei e a realidade fática de sua aplicação. Conseqüentemente, esta hipocrisia legal conduz a resultados desastrosos no tocante aos fundamentos do Estado Democrático de Direito.

Estas constatações iniciam-se com a verificação dos verdadeiros fins do Estado em suas ações. Ver-se-á, desta forma, seu comprometimento com os interesses das classes sociais dominantes. Logo, sendo o Direito Penal uma opção política estatal, sua atuação também será contaminada por tais interesses. Destarte, age o sistema punitivo não como protetor de bens jurídicos, mas como um mantenedor da estrutura social, bem como de suas características desiguais e marginalizadoras.

Sob uma pretensa igualdade, o sistema penal, na verdade dos fatos, atua selecionando condutas que atingem principalmente indivíduos de grupos sociais menos favorecidos. Em outras palavras, procura-se manter a salvo as classes sociais dominantes, cujas condutas lesivas (crimes econômicos, ecológicos etc.) se encontram em segundo plano na seara legislativa. “O sistema penal visivelmente cria e reforça as desigualdades sociais” (HULSMAN, Louk et alii. Penas perdidas: o sistema penal em questão. Tradução de Maria Lúcia Karam. Rio de Janeiro : Luam, 1993. p. 75).

Atualmente, para se manter investimentos financeiros estrangeiros em um país, determinadas características devem estar presentes, v.g., controle dos gastos públicos, redução de impostos, reforma da proteção social, bem como a flexibilização das normas do mercado de trabalho (BAUMAN, Zygmunt. Globalização: as conseqüências humanas. Tradução: Marcus Penchel. Rio de Janeiro : Jorge Zahar, 1999. p. 112).

Portanto, para garantir a ordem socioeconômica, o Estado recorre principalmente a políticas criminais de aumento do poder punitivo. A função da pena é a “domesticação” das convulsões sociais causadas pelas incongruências do sistema econômico. “O nó por desatar é o do pleno emprego um nó que nenhuma experiência capitalista desatou até agora (…). (…) Em suma, é impossível enfrentar o problema da marginalização criminal sem incidir na estrutura da sociedade capitalista, que tem necessidade de desempregados, que tem necessidade, por motivos ideológicos e econômicos, de uma marginalização criminal” (BARATTA, Alessandro. Criminologia crítica e crítica do direito penal: introdução à sociologia do direito penal. 2ª ed. Tradução de Juarez Cirino dos Santos. Rio de Janeiro : Freitas Bastos, 1999. pp. 189-190).

À luz do exposto, icto oculi, pode-se afirmar que há no contrato social um vício de consentimento. O Estado não age, principalmente no âmbito do Direito Penal, de acordo com o estabelecido na Carta Magna. Porém, a reversão desta situação está numa ampla mudança em toda a estrutura punitiva de forma a democratizá-la. Desta forma, um dia descerá Artemis, deusa grega da justiça, de sua morada olímpica e distante dos homens, para se tornar uma freqüentadora assídua de favelas nos centros urbanos. Tirá-la de seu trono inalcançável e fazê-la uma comum do povo não é simplesmente uma utopia, mas um norte a ser seguido por todo operador do Direito.

Daniel Rachid Pezzato é acadêmico na Faculdade de Direito de Curitiba.

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