Em dezembro de 2007, o Ministro Extraordinário de Assuntos Estratégicos Roberto Mangabeira Unger, divulgou texto para debate sobre as relações de trabalho e capital no país. Encerradas as análises em recente reunião com o Presidente Luiz Inácio Lula da Silva, depois das reuniões com dirigentes sindicais dos trabalhadores e dos empregadores, inicia-se a fase de elaboração de propostas para serem encaminhadas ao Congresso Nacional.
Afirma o Ministro Mangabeira Unger: ?Essa iniciativa nasceu da convicçäo de que a reconstruçäo de nosso modelo de desenvolvimento no rumo da ampliaçäo de oportunidades, do crescimento econômico socialmente includente e da escalada de produtividade exige revisäo abrangente e ousada das relaçöes entre o trabalho e o capital. Näo temos experiência de tal esforço desde o período de Getúlio Vargas, quando se formou a legislaçäo ainda em vigor. Três foram os temas escolhidos como fulcros da discussäo: a diminuição da informalidade, a reversão da queda da participação dos salários na renda nacional e a reforma do regime sindical?.
Resgatar a maioria da economia informal
?Difícil dizer que parte de força de trabalho atua na economia informal, trabalhando sem carteira assinada, sem a proteção ou a disciplina da lei. Não há dúvida, porém, de tratar-se da maior parte da população economicamente ativa do país: talvez por volta de 60%. Essa é uma calamidade brasileira – econômica, social e moral. Resgatar a maioria da informalidade, com toda a dimensão e rapidez possíveis, é prioridade de qualquer projeto que pretenda reconstruir as relaçöes entre trabalho e capital no Brasil sob o signo da reconciliação entre o desenvolvimento e da justica. São os seguintes os componentes da convergência que começa a formar-se a respeito desse tema: 1. como preliminar, entendemos que parte da informalidade tem a ver com fraude do regime legal e tributário. E fraude precisa ser combatida agressivamente, à parte qualquer mudança na estrutura de custos, de incentivos e de oportunidades para empregar e para trabalhar. 2. Há dois grandes aspectos do problema da informalidade: política econômica e desoneração da folha de salários?.
Política econômica
?Há toda a razão para conceber uma política industrial includente, voltada para o mundo dos empreendimentos emergentes, como parte da estratégia para diminuir a informalidade. São três os meios que a definem. O primeiro elemento – de aconselhamento gerencial, de formação de quadros e de práticas – costuma ser, no mundo todo, o mais difícil. É, porém, a área em que o Brasil mais avançou, por conta do papel histórico do Sebrae. Ao Sebrae, porém, faltam braço financeiro e braço tecnológico. Daí os outros dois elementos dessa política industrial. O segundo elemento é o financeiro: trabalhar com o Banco do Brasil, com a Caixa Econômica Federal, com o BNDES, com o Banco do Nordeste e com o Banco da Amazônia para ampliar, rapida e dramaticamente, o crédito ao pequeno produtor. É objetivo que exige baixa de custos, e, portanto padronização de práticas, nos empréstimos. O terceiro elemento é o tecnológico: atuar junto aos Ministérios de Ciência e Tecnologia e de Indústria e Comércio para organizar uma Empraba industrial, vocacionada para ajudar os emprendimentos emergentes. Essa Embrapa industrial não precisa (nem deve) ser empresa unitária, como a própria Embrapa. Deve ser composta por rede que aglomere e amplie as instituiçöes federais e estaduais que já adaptam e transferem tecnologia – e perícia tecnológica – às pequenas empresas. O significado dessa iniciativa pode ser enorme em economia caracterizada como a nossa pela avassaladora predominância de empresas de pequena escala. O empreendedorismo desse mundo demonstra misteriosa vitalidade em meio a condiçöes inóspitas. Equipada com os instrumentos de que precisa, pode revelar-se formidável dínamo de crescimento?.
Desoneração da folha de salários
?Três grandes camadas de ônus incidem hoje sobre a folha salarial. A primeira camada é de acessórios, por exemplo, o sistema S e o salário educação. Houve consenso de que devem ser financiados esses acessórios – quando seu financiamento se justificar – pelos impostos gerais. Devem, portanto, desde já deixar de incidir sobre a folha. A terceira camada é a dos benefícios diretos do trabalhador: fazem parte do que se pode chamar um quase-salário, …devem ficar, ao menos por enquanto, na folha. O debate centrou-se na contribuição patronal à previdência do empregado. A idéia de que a folha de salários deve ser substituída pelo faturamento como base para o financiamento da previdência (no que diz respeito à parte hoje coberta pela contribuição patronal). Nossas longas discussöes, porém, acabaram por considerar preocupantes os dois maiores defeitos dessa fórmula intermediária. O primeiro defeito é a incidência desigual sobre as empresas ? maior sobre as empresas intensivas em capital. Essas empresas empregam relativamente menos, mas representam vanguarda na escalada de produtividade. O segundo defeito é compartilhar aspectos de um imposto declaratório e ser, portanto, suscetível de evasão fraudulenta. A partir dessas constataçöes, a discussão evoluiu para solução mais radical: o financiamento pelos impostos gerais da receita gerada hoje pela segunda camada de ônus – os ônus previdenciários – sobre a folha de salários. Ou mais precisamente: seu financiamento pelo imposto mais neutro – menos distorcivo de preços relativos – que existir em nosso modelo tributário no momento em que se fizer a mudança?.
Reversão da queda da participação dos salários na renda nacional
?Há cerca de meio século cai a participação dos salários na renda nacional. É longe de ser tendência universal no mundo. Diferem radicalmente as sociedades contemporâneas, mesmo quando comparadas em nível semelhante de desenvolvimento, na maneira de dividir a renda nacional entre o trabalho e o capital. O decréscimo duradouro da parte da renda que no Brasil vai ao fator trabalho opera como causa de desigualdadede poderosa demais para ser plenamente contrabalançada por qualquer política social. E ameaça nossa capacidade de escapar pelo alto – da escalada de produtividade e da valorização do trabalho – da prensa entre economias de trabalho barato e economias de produtividade alta em que nos eoncontramos. Nem as limitaçöes do aumento da produtividade do trabalho bastam para explicar esse resultado. Há muito tempo que a subida do salário real no Brasil costuma ficar aquém dos avanços da produtividade. Para reverter a queda da participação dos salários na renda nacional, não bastam políticas que procuram influenciar o salário nominal, como, sobretudo a política do salário mínimo. Tais políticas têm eficácia restrita. São facilmente anuladas por inflação quando não barradas por política monetária comprometida em manter a estabilidade da moeda. Vargas instituiu a política do salário mínimo, mas o fez como parte integrante e acessória de uma construção institucional. A nós falta construção dessa ordem. E, na falta dela, os instrumentos que influenciam o salário nominal acabam por se mostrar insuficientes. Nas nossas discussöes, partimos da constatação das enormes desigualdades entre os salários no Brasil: uma das espécies mais graves e menos comentadas de desigualdade entre nós. Por conta dessa realidade, concluímos que, em primeira etapa, as iniciativas institucionais (e tributárias) destinadas a reverter à queda da participação dos salários na renda do país devem ser distintas para diferentes níveis da pirâmide salarial. Na base dessa pirâmide, o primeiro objetivo precisa ser assegurar que o regime tributário seja pelo menos neutro: que pare de castigar quem emprega e qualifica o trabalhador mais pobre e menos qualificado. Para a etapa seguinte, o alvo passará a ser tornar positivo o regime, por meio de incentivos tributários ao emprego e à qualificação desses assalariados. Para o meio da hierarquia salarial, iniciativa prioritária seria proteger e representar os trabalhadores temporários ou terceirizados. No Brasil, como em todo mundo, representam parcela crescente da força de trabalho. A justiça e a prudência exigem que esses trabalhadores ?de segunda classe? gozem de direitos e contem com representantes: para que não sofram abusos e não sejam usados como ?exército de reserva? que fragilize a posição dos assalariados permanentes. Daí a necessidade de atenuar o contraste radical entre alto padrão de resguardo para os que desfrutam de empregos regulares e falta quase total de direitos para os que estão relegados à insegurança do trabalho temporário ou terceirizados. Lembrados de que a própria CLT disciplina o trabalho por prazo determinado, os participantes em nossas discussöes procuraram fórmulas que alcançassem dois alvos ao mesmo tempo. O primeiro objetivo é combater o trabalho temporário ou terceirizado quando ele serve apenas como instrumento para escapar de obrigações trabalhistas. O segundo propósito é assegurar que o trabalhador legitimamente temporário ou terceirizado esteja protegido por lei e representado por sindicato. Não há como abolir o problema. Temos de enfrentá-lo. Propõe-se estatuto próprio do trabalhador temporário ou terceirizado que discipline suas condições de trabalho. E novo desenho institucional para representá-los. Os meios de comunicação eletrônica ampliam dramaticamente as oportunidades para representar trabalhadores que não se encontram juntos no mesmo lugar. Já a partir do topo da pirâmide salarial, a iniciativa recomendada é a efetivação do princípio constitucional de participação dos trabalhadores nos lucros ou resultados das empresas. Princípio que até hoje permanece letra morta. É natural começar a dar-lhe efetividade a partir dos níveis mais altos do assalariados, em círculos concêntricas que incluam parcelas cada vez mais amplas da força de trabalho. É entre os assalariados melhor remunerados que se entende e se abraça com mais facilidade a idéia de que empresa e empregado podem e devem ser de alguma maneira, sócios. Os participantes nessas discussões preocuparam-se em não deixar que a participação nos lucros ou resultados servisse apenas para converter salário regular em remuneração variável. Indícios de tal conversão devem ser considerados sinais presuntivos de violação da lei. E insistiram que a integridade do princípio requer como garantia indispensável, o acesso dos representantes dos trabalhadores à contabilidade das empresas. Tal acesso pode surtir benefícios adicionais ao servir para instigar padrões mais exigentes de ?governança corporativa? nas grandes e médias empresas em que costumam trabalhar os assalariados mais bem remunerados?.
Regime sindical
?1. Reconhecer em lei o papel das centrais como organizações de âmbito nacional, transcendendo setores específicos da economia e representando correntes distintas dentro do movimento sindical. Daí a razão para reconhecer-lhes em lei o poder não só de representar, mas também de negociar quando a negociação diz respeito à questões básicas e gerais como a relação que deva haver entre aumento de salário e aumento de produtividade.
2. Substituir o imposto sindical por ?participação negocial?. …é preciso encontrar substituto para o imposto sindical que fortaleça a legitimidade do sindicalismo sem comprometer sua independência financeira.
3. Assegurar ao sindicato da categoria preponderante na base – na local de trabalho ou na unidade fabril – o direito e a responsabilidade de representar todos os trabalhadores que atuem naquela base, seja qual for sua categoria. Esse é o resíduo pragmático do princípio da unicidade que todos apoiam: tanto os que abraçam aquele princípio como regra geral quanto àqueles que o rejeitam.
4. Combater práticas anti-sindicais. A reconstrução do regime sindical precisa vir acompanhada de compromisso para combater práticas anti-sindicais. Comprometer-se em combater práticas anti-sindicais significa não tolerar qualquer tentativa de tolher ilegalmente o direito de organizar o sindicato ou de exercer, dentro da lei e do respeito às prerrogativas legais dos patrões e de seus representantes, a militância sindical. O objetivo não é facilitar o conflito; é, pelo contrário, zelar pelo respeito das partes a regras que permitam compor interesses contrastantes e descobrir interesses compartilhados.
5. Organizar legalmente a prática das negociações coletivas, liberada do critério restritivo da data-base. O papel do regime legal não é ocupar o espaço das negociações coletivas e das relações contratuais. É estabelecer arcabouço no qual tais negociações e relações não estejam predestinadas a representar apenas o triunfo dos fortes sobre os fracos: do capital sobre o trabalho, e dos segmentos mais avantajados do assalariado sobre os mais fracos. Em vez de impor o conteúdo de cada contrato de trabalho, diminuindo o espaço da negociação coletiva, amplia-se esse espaço, mas reforma-se a estrutura institucional em que ela ocorre. E suprimem-se os resquícios de um sistema que procura conter a negociação coletiva dentro da camisa-de-força de um calendário uniforme, que pode não guardar relação com as circunstâncias de cada sindicato, de cada empresa e de cada setor da economia?.
Sobre a questão da reforma sindical
A alegação, constante do texto ministerial, de que há cinco pontos de convergência, não condiz com a realidade dos debates atuais. Não há concordância quanto ao papel das Centrais Sindicais no que se refere a negociação coletiva nacional, especialmente quanto a um ?acordo nacional?; não há concordância em se eliminar a contribuição sindical mas, pelo contrário, a maioria expressiva da atual representação sindical defende sua manutenção na medida em que os sindicatos representam toda a categoria profissional e econômica, no sistema da unicidade sindical; muito menos ainda que não há concordância, pelo contrário, existe resistência à tentativa de se eliminar as categorias diferenciadas, como quer a proposta de que o sindicato da categoria preponderante represente toda a base, pois se trata de uma posição que vai contra a história e a luta de diversas e importantes categorias profissionais, devendo ser rechaçado este ponto; a representação sindical no local de trabalho não pode ser somente do sindicato preponderante, mas de todos os segmentos sindicais profissionais que representam os trabalhadores em determinada base; a extinção da data-base é um retrocesso, pois a data-base unifica setores profissionais e normatiza a ação sindical e, assim, esse ponto deve ser rejeitado.
Edésio Passos é advogado.
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