Direito Penal Informático ?versus? Informatização do Direito Penal (final)
Luiz Flávio Gomes
Quanto à prevenção da criminalidade informática cabe destacar que se trata de um ítem que vem contando com grande interesse nos últimos tempos. Os particulares e sobretudo as empresas sensibilizam-se cada vez mais com a questão da segurança e do controle do seu sistema informatizado. Novas tecnologias estão aparecendo no mercado e destinam-se exclusivamente à segurança do sistema.
Uma prevenção eficaz (seja frente aos próprios empregados, seja frente a terceiros) requer (dentre tantas outras providências), pelo menos, alguns cuidados mínimos como: (a) a separação física da seção de informática (restrição de acesso); (b) a diversificação dos sistemas de segurança; (c) a troca freqüente dos códigos secretos; (d) registro ininterrupto sobre quem e quando operou o sistema; (e) desconexão automática dos terminais depois de um certo tempo de inatividade; (f) o uso de linhas telefônicas privativas; (g) o uso (quando possível) de satélites total ou parcialmente privado.
Perspectivas político-criminais
Como já afirmado, do ponto de vista político-criminal pode-se afirmar que a freqüência da criminalidade informática, suas drásticas conseqüências lesivas, a intensidade dos ataques, a importância dos bens jurídicos envolvidos (intimidade, privacidade, patrimônio, segredo industrial, segredo comercial, segredo empresarial etc.) justificam a intervenção do Direito Penal nessa área. De qualquer modo, também como já dói salientado, não se pode esquecer que esse instrumento de controle social é subsidiário e fragmentário.
No restrito, subsidiário e fragmentário campo do Direito Penal podem tão-somente aparecer: (a) crimes ?contra? o próprio sistema de informatização (danos aos programas, danos aos dados etc.); (b) crimes cometidos ?por meio? do sistema informatizado (crimes novos, como violação de segredo, acesso indevido e danos a programas e dados etc.). Os chamados crimes impróprios (ou impuros), que são os tradicionais – estelionato, pedofilia, racismo etc. – cometidos pelo computador -, já estão definidos no ordenamento jurídico e nesse caso é totalmente desaconselhável o ?bis in idem? criminalizador.
Informatização do Direito penal
É inegável que as novas tecnologias da informação e da comunicação já se acham presentes no âmbito do Direito. São ferramentas ou instrumentos extremamente úteis (se não necessários) para o ensino, compreensão, aplicação e execução do Direito, incluindo-se o penal.
A chamada informatização do Direito tem tido projeção em quatro grandes áreas que são as seguintes:
(a) documentação: uma quantidade infinita de informações legislativas, jurisprudenciais e doutrinárias, na atualidade, acha-se totalmente documentada. Isso tem facilitado muito as pesquisas acadêmicas, científicas ou forenses. A documentação da informação converteu-se em fonte absolutamente indispensável para o profissional da área jurídica;
(b) gestão (ou gerenciamento): tornou-se também inquestionável a utilidade da informatização seja para a gestão profissional dos que atuam no âmbito jurídico, seja para a administração da Justiça;
c) criação ou interpretação das normas: os programas ou sistemas informatizados também têm sido úteis tanto para o legislador no momento da criação da norma, como para os profissionais ou aplicadores delas (que dependem ou se valem dos suportes informáticos para a elaboração de petições, pareceres, decisões etc.);
(d) decisão: o último âmbito que a informatização poderia ter incidência diz respeito à própria decisão judicial. Seria possível desenvolver algum programa que fosse capaz de decidir um conflito de interesses, substituindo nessa atividade o juiz? A cibernética já está em condições de fazer justiça pela máquina, ou seja, pela inteligência artificial?
São quase incontáveis as iniciativas que já pretenderam ou que pretendem transformar a decisão judicial em decisão informatizada. A primeira experiência conhecida talvez tenha sido a Jurimetria (1949), que pretendia prever sentenças com base em estatísticas. Mais modernamente contam com destaque outros ?sistemas expertos?, inclusive na área penal (sistemas expertos são sistemas que almejam atuar como um experto humano para a solução de um determinado problema)(2).
Na área da medicina um dos primeiros sistemas expertos foi o MYCIN (idealizado para o diagnóstico e tratamento de enfermidades infecciosas no sangue). No campo jurídico e especificamente (às vezes) no campo judicial podem ser lembrados os seguintes: PROLOG e LEGOL na Inglaterra, ESPLEX e LABEO na Itália; SENTENÇA POR COMPUTADOR (nos Países Baixos); JUDITH e LEX (na Alemanha); CCLIPS, FLE, COUNSELOR, JUDGE e TAXMAN nos Estados Unidos; KBS, SECI, SARI e HADA na Venezuela etc.
Mostram-se louváveis todas essas iniciativas no sentido de se buscar maior rapidez e segurança na aplicação do Direito. De qualquer maneira, contra elas há duras críticas assim como alguns obstáculos que são praticamente intransponíveis.
Vamos começar pela principal crítica que se pode formular contra os sistemas expertos que pretendem oferecer a projeção total de uma sentença, eliminando-se a figura humana do juiz: ela consiste no risco de ?desumanização? ou de ?despersonalização? da sentença e do próprio Direito penal. As novas tecnologias são praticamente inevitáveis nos dias atuais, porém, jamais devemos fazer tabula rasa dos direitos e garantias individuais.
A esse propósito bem esclareceu Palomino Martín (que é professor de Direito penal na Universidade de Palmas de Gran Canaria) o seguinte: ?Não devemos fechar nossas portas para o progresso tecnológico, ao contrário, devemos dele nos aproximar, porém, sem perder nosso senso crítico. Não falta razão a Pérez Luño quando afirma que a conjuntura presente reclama dos juristas, dos filósofos e dos teóricos do Direito uma consciência tecnológica, ou seja, uma atitude reflexiva, crítica e responsável diante dos novos problemas suscitados, nas diversas esferas do acontecimento social, pela tecnologia, assim como diante de questões que nem o Direito, nem quem o aplica ou estuda, pode permanecer insensível?(3).
Não se pode conceber o computador como uma ?máquina de fazer justiça?. De qualquer maneira, as críticas de Max Weber contra a informatização da Justiça e do Direito (?máquina sem alma, uma autômata legal?) podem conduzir a graves equívocos e até mesmo ?atemorizar os mal informados? que, presos às velhas doutrinas metodológicas do século XIX, acabam se comportando como Don Quixote, que via perigos e inimigos em todos os moinhos de vento com os quais se deparava.
De outro lado, é certo que a informatização encontra, no ato decisional do juiz, limites insuperáveis. A clássica e provecta lógica formal defendia o método silogístico para comandar a atividade intelectual e decisional do juiz: premissa maior (norma), premissa menor (fato) e conclusão. Se a distribuição da justiça fosse enquadrável nesse método meramente subsuntivo (isto é, nesse leito de Procusto), talvez tudo pudesse mesmo ser informatizado. Documentaríamos num suporte informático a norma e o fato e o computador daria a conclusão (isto é: a conseqüência jurídica pertinente).
Mas a atividade decisional do juiz não se desenvolve dessa maneira. A sentença não é um exercício de subsunção formal. A norma (premissa maior) sempre apresenta problemas interpretativos. Os fatos (premissa menor) sempre exigem eleição (e seleção). Até mesmo as conseqüências jurídicas induzem a uma valoração (dosagem da pena entre o mínimo e o máximo, v.g.).
Como sintetiza magistralmente Ferrajoli: a verdade fática é sempre uma verdade probabilística; a verdade normativa é sempre uma verdade opinativa.
Aprofundando: a verdade fática (a verdade dos fatos) é sempre probabilística porque nunca os fatos passados são reproduzidos dentro do processo com exatidão. De outro lado, como são revelados por meio de provas, estas sempre exigem eleição, seleção, valoração. O princípio da verdade real sempre esteve em crise. Aliás, nunca deixou de ser uma inverdade. Só se pode falar em verdade processual (a que fica registrada nos autos) e é ela que serve de suporte para a decisão do juiz.
A verdade normativa (o verdadeiro sentido da norma) é sempre opinativa porque toda norma autoriza várias interpretações. Pode-se ver a mesma norma sob várias perspectivas e cada perspectiva apresenta seu resultado interpretativo. Em outras palavras: também o sentido da norma depende de eleição, seleção e valoração.
Com os conhecimentos de que é dotado hoje o ser humano (e a cibernética) não existe nenhuma máquina que possa ser capaz de eleger, selecionar e valorar seja os fatos relevantes (que serão objeto da sentença), seja o sentido normativo mais adequado para o caso concreto.
A rigor, nenhuma parte do ato decisional pode ser completamente isolada da atividade humana. São elas: cognitiva, valorativa, decisional e argumentativa. A primeira diz respeito ao conhecimento do fato e da norma. Mas não existe conhecimento fático ou normativo que não exija valoração, eleição e seleção.
Conclusão: a informatização da Justiça e do Direito já cumpre papel relevante no âmbito da documentação e da gestão. Pode, ademais, servir de auxílio para a atividade decisional do juiz, mas ainda não está em condições de substituí-lo nesse ato, que é eminentemente valorativo, eletivo e seletivo. Ainda não chegou o tempo da ?Justiça feita pela máquina?. O protagonismo do ser humano na tarefa de distribuir justiça continua insuperável. A inteligência artificial não conseguiu desenvolver todos os raciocínios e valorações que são feitos pelos juízes. Em outras palavras: a máquina ainda não se mostrou capaz de substituir o julgador. O ser humano não conseguiu enquadrar o Direito na lógica binária dos computadores. Sobretudo a atividade de dizer o direito (o ius dicere) dificilmente se compatibiliza com as limitações da cibernética.
Reconhecer o valor da informatização do Direito penal, portanto, é tão relevante quanto evidenciar os seus limites (naturais e jurídicos). A dialética que acaba de ser descrita (relevância e limites da informatização) não pode ser perdida de vista. Aliás, essa é a essência da denominada consciência tecnológica, que jamais pode ser ignorada pelo jurista, filósofo, aplicador ou profissional do Direito.
Notas:
(2). Cf. PALOMINO MARTÍN, Derecho penal y nuevas tecnologias, Valencia: Tirant lo blanch, 2006, p. 93 e ss.
(3). Cf. PALOMINO MARTÍN, Derecho penal y nuevas tecnologias, Valencia: Tirant lo blanch, 2006, p. 113.
Luiz Flávio Gomes é outor em Direito penal pela Faculdade de Direito da Universidade Complutense de Madri, Mestre em Direito penal pela USP, Secretário-Geral do IPAN (Instituto Panamericano de Política Criminal), Consultor e Parecerista, Fundador e Presidente da Rede LFG Rede Luiz Flávio Gomes de Ensino Telepresencial (1ª do Brasil e da América Latina – Líder Mundial em Cursos Preparatórios Telepresenciais www.lfg.com.br)