Atualmente, a exemplo do que tem ocorrido com as demais áreas jurídicas, o direito penal está passando por um processo de reordenação e reinterpretação de suas normas à luz da Constituição Federal. Em verdade, esse processo de filtragem constitucional aparenta ser novo, mas sua origem podem ser percebida na consolidação de princípios que sustentam o próprio Estado Democrático de Direito.
O primeiro fundamento teórico que possibilita e determina que o direito penal seja interpretado e aplicado com a filtragem constitucional é o princípio da supremacia da Constituição. Por este princípio, explica Kelsen, uma Constituição serve de fundamento de validade para todas as demais espécies legislativas. Nas palavras do autor ?é na norma fundamental, no mais profundo sentido, que se baseia o ordenamento jurídico.?
Este, portanto, é o fundamento lógico de estrutura do sistema jurídico. Uma Lei Fundamental que orienta as demais esferas jurídicas para se harmonizarem aos seus preceitos. Daí, então, a necessidade de o direito penal adequar suas normas e, sobretudo, sua hermenêutica, aos comandos Constitucionais.
Esclarecida, então, a estrutura do sistema, importa, agora, ressaltar que em nosso país vigora uma Lei Fundamental analítica. Por este motivo, para além de ser um fundamento de validade do sistema jurídico, nossa Constituição deve ser a ?fonte primeira da lei penal.? Isto porque, o texto constitucional traz, detalhadamente em seus dispositivos, os vetores do direito penal, formando o que se denomina de direito penal constitucional.
Os princípios do direito penal constitucional são autênticas expressões do Estado Democrático de Direito e, deste modo, devem orientar e limitar a atividade legislativa do Poder Público. Dentre esses comandos, um de grande importância é o princípio da reserva legal (art. 5.º XXXIX da CF/88) que, segundo Nilo Batista, ?transcende o condicionamento histórico que o produziu e constitui a chave mestra de qualquer sistema penal que se pretenda racional e justo.?
A presunção de inocência é igualmente um dos alicerces do direito penal constitucional art. 5.º LVII da CF/88. Revela-se uma das garantias mais importantes para a manutenção da dignidade da pessoa humana e está intimamente ligada às normas processuais penais do sistema acusatório.
Como expressões do direito penal constitucional, podem ainda ser citados: o princípio da irretroatividade da lei penal mais gravosa; a necessidade de individualização da pena; o princípio da personalidade da pena aplicada; a vedação à produção de prova ilícita; a vedação de penas perpétuas, de trabalhos forçados e de penas cruéis; a garantia do direito de ampla defesa, do devido processo legal e do juiz natural…
Todos esses primados do direito penal constitucional estão dispostos ao longo do artigo 5.º de nossa Lei Fundamental e, em decorrência de nosso sistema constitucional rígido, estão inseridos no chamado núcleo imodificável da Constituição. Nada obstante, ainda que estejam alçados à categoria de normas constitucionais fundamentais, muitos destes princípios carecem de real implementação.
Essa falta de efetividade das normas penais constitucionais deslegitima todo o discurso que busca justificar a existência do direito penal para a proteção de bens jurídicos. É preciso filtrar esse pensamento. Livrá-lo das impurezas. Não é para isso que o direito penal existe. Sob as lentes da Constituição Federal, o direito penal existe para garantir a cidadania e a dignidade da pessoa humana. Seja, por um lado, combatendo o crime por meio de suas sanções, seja, por outro, garantindo aos réus todos os direitos que lhes são assegurados em nossa Lei Fundamental.
Somente quando pudermos bem aquilatar esses dois interesses, que antes de serem antagônicos, são complementares, é que estaremos, realmente, agindo de acordo com os objetivos fundamentais da República Federativa do Brasil na busca de uma sociedade livre, justa e solidária, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação.
Dante Bruno D?Aquino é assessor jurídico do Ministério Público do Estado do Paraná e pós-graduando em direito constitucional pela Academia Brasileira de Direito Constitucional.
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