No que diz respeito à prerrogativa contemplada no art. 7º, V, da Lei n. 8.906/1994 – Estatuto da Advocacia, interpretado constitucionalmente pelo STF na ADIN 1.127-8 (“São direitos do advogado […] não ser recolhido preso, antes de sentença transitada em julgado, senão em sala de Estado Maior, com instalações e comodidades condignas, e, na sua falta, em prisão domiciliar”), cabe ponderar o seguinte: toda distinção fundada na profissão ou na função é um privilégio e todo privilégio pessoal ou profissional é antirrepublicano. Numa República evoluída e civilizada (prisionalmente) isso não deveria existir. Mas as prisões brasileiras são tão dramaticamente inconstitucionais (porque desumanas, cruéis e degradantes) que toda regra que as evita passa a ser boa (e bem-vinda), porque razoável e proporcional.
A jurisprudência vem reconhecendo o direito do advogado à Sala de Estado Maior, nestes termos:
“[…] Por fim, o ora paciente, advogado comprovadamente inscrito nos quadros da OAB, tem direito a permanecer provisoriamente segregado em sala de Estado Maior, com instalação e comodidades dignas ou, em sua falta, em prisão domiciliar (art. 7.º, V, da Lei n. 8.906/1994 -Estatuto da OAB). A Polícia Militar não é a única instituição responsável pela manutenção de salas de Estado-maior, podendo tê-las o Corpo de Bombeiros, bem como o Exército, Marinha e Aeronáutica. HC 129.722-RS, Rel. Min. Og Fernandes, julgado em 20/10/2009 (Inf. 412).
Há que se notar que o dispositivo legal citado (art. 7.º, V, do Estatuto da Advocacia) não proíbe a prisão cautelar de advogado, sim, apenas a condiciona à Sala de Estado Maior ou prisão domiciliar. Aliás, uma vez aprovada a reforma do CPP que está no Congresso Nacional, a prisão domiciliar passará a ser uma das alternativas possíveis para a prisão cautelar, com aplicação generalizada. Isso significa civilização.
O que se entende por Sala de Estado Maior? Quem nos deu a definição foi o STF, na Reclamação de n.º 4.535: por Estado-Maior se entende o grupo de oficiais que assessoram o Comandante de uma organização militar (Exército, Marinha, Aeronáutica, Corpo de Bombeiros e Polícia Militar); assim sendo, “sala de Estado-Maior” é o compartimento de qualquer unidade militar que, ainda que potencialmente, possa por eles ser utilizado para exercer suas funções.
Assim, entende-se por sala de Estado Maior qualquer sala nas dependências de Comando das Forças Armadas (Exército, Marinha ou Aeronáutica) ou Auxiliares (Polícia Militar ou Corpo de Bombeiros). Além de trazer a definição de Sala de Estado Maior, a nossa Suprema Corte cuidou de diferenciá-la da cela. Essa, de acordo com o entendimento firmado “tem como finalidade típica o aprisionamento de alguém – e, por isso, de regra contém grades -, uma “sala” apenas ocasionalmente é destinada para esse fim. Para fazer uso de tal direito, o que se exige é que se trate de advogado regularmente inscrito na OAB, não sendo pressuposto o efetivo e regular exercício da advocacia.
Praticamente não existe no Brasil nenhuma “Sala de Estado-Maior”, logo, o fundamental é o respeito à dignidade do advogado preso cautelarmente. Isso depende, portanto, de cada caso concreto. Partindo dessa premissa, diante da prisão preventiva de advogado regularmente inscrito na OAB, não existindo tal acomodação na Comarca (ou região), recomenda-se a concessão de habeas corpus para que seja reconhecido o direito à prisão domiciliar. A jurisprudência é reiterada nesse sentido:
“A inexistência, na comarca, de estabelecimento adequado ao recolhimento prisional do Advogado, antes de consumado o trânsito em julgado da condenação penal, confere-lhe o direito de beneficiar-se do regime de prisão domiciliar.” (RTJ 169/271-274, rel. Min. Celso de Mello). No mesmo sentido: STJ, HC 129.722-RS, rel. Min. Og Fernandes, j. em 20.10.09.”
Cabe ainda sublinhar o seguinte: a incompatibilidade entre a norma anterior especial (Lei n.º 8.906/94, art. 7.º, V) e a norma posterior geral (Lei n.º 10.258/2001 – prisão especial) resolve-se em favor da primeira (“lex posteriori generalis non derogat priori speciali”). Sala de Estado Maior é privilégio odioso, repita-se, mas tolerável em um país que descumpre (inconstitucionalmente) todas as regras jurídicas relacionadas com o recolhimento de pessoas às prisões. A prisão domiciliar no lugar da prisão cautelar significa avanço extraordinário. Que esse avanço seja estendido, o mais pronto possível, a todos os presos cautelares. O advogado já está contemplado na lei. Agora temos que estender esse mesmo direito a todos os que não ofereçam risco, estando em prisão domiciliar. Ou por via legislativa, ou por via judicial (declarando-se a inconstitucionalidade de alguns presídios brasileiros).
Luiz Flávio Gomes é doutor em Direito penal pela Universidade Complutense de Madri, mestre em Direito Penal pela USP e diretor-presidente da Rede de Ensino LFG. Foi promotor de Justiça (1980 a 1983), juiz de Direito (1983 a 1998) e advogado (1999 a 2001). www.blogdolfg.com.br