O direito de o réu se defender pessoalmente compreende também o direito de presença (direito de estar fisicamente presente, de forma direta ou remota, o que se tornou possível por meio da videoconferência) durante todo processo, mas, sobretudo, nas audiências. Esse direito vem contemplado expressamente no Pacto Internacional dos Direitos Civis e Políticos (da ONU) (“toda pessoa acusada de um delito terá direito a (…) estar presente no julgamento” (art. 14, 3, d) e implicitamente na Convenção Americana sobre Direitos Humanos (da OEA) (“direito do acusado de defender-se pessoalmente”; “direito da defesa de inquirir as testemunhas presentes” etc. art. 8.º, 2, d e f).

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O direito de presença física nas audiências vem sendo assegurado (por corrente minoritária no STF – cf. HC 86.634/RJ, rel. Min. Celso de Mello, j. 12/9/2007), ainda que se trate de réu perigoso (como era o caso, neste julgado, do “Fernandinho Baira-Mar). No julgado ficou sublinhado que “assiste, ao réu preso, sob pena de nulidade absoluta, o direito de comparecer, mediante requisição do Poder Judiciário, à audiência de instrução processual em que serão inquiridas testemunhas arroladas pelo Ministério Público”. É dever do Estado (Executivo, Legislativo e Judiciário) respeitar e fazer cumprir seus compromissos internacionais.

O direito de presença física durante os atos processuais, para além de exprimir uma das facetas do direito de autodefesa, envolve, ademais, tanto o direito de confrontação com as vítimas e testemunhas, como também o direito de compreender todos os atos praticados durante o processo (quando for o caso, como vimos, deve-se nomear tradutor ou intérprete), para que possa ser exercido o contraditório.

O direito de presença em todos os atos processuais, de outro lado, pode ser garantido de duas formas: com a presença física direta na audiência ou mediante os modernos meios de comunicação (videoconferência, por exemplo, que finalmente foi disciplinada pela Lei 11.900/2009). Desde que assegurados todos os direitos e garantias fundamentais (ampla defesa, contraditório etc.) previstos na referida lei, nada impede o uso das modernas tecnologias na Justiça. A lei que acaba de ser mencionada era absolutamente necessária para a regularização do uso da videoconferência no Brasil. Leis estaduais não podiam cumprir esse papel (STF, HC 90.900-SP, rel. Min. Menezes Direito).

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Firmadas as premissas (e a base internacional) do direito de presença, não há como deixar de reconhecer o flagrante retrocesso (em termos de garantias fundamentais) estampado na majoritária jurisprudência do STF e retratado neste julgado (de 19/11/09): “O Tribunal, por maioria, reconheceu a existência de repercussão geral no tema objeto de recurso extraordinário interposto contra acórdão de Turma Recursal Criminal de Comarca do Estado do Rio Grande do Sul, reafirmou a jurisprudência da Corte acerca da inexistência de nulidade pela ausência, em oitiva de testemunha por meio de carta precatória, de réu preso que não manifestou expressamente intenção de participar da audiência, e negou provimento ao apelo extremo. Esclareceu-se que, no caso, o defensor fora intimado da data da expedição da precatória e da data da audiência realizada no juízo deprecado, não havendo sequer indício de que o réu desejasse comparecer. Vencidos os Ministros Marco Aurélio e Celso de Mello, que, ao se reportarem ao que decidido no HC 93503/SP (DJE de 7/8/2009) e no HC 86634/RJ (DJE de 23/2/2007), proviam o recurso por vislumbrar transgressão ao devido processo legal, asseverando que a presença do acusado na audiência constituiria prerrogativa irrevogável, indisponível, sendo irrelevante o fato de ter sido ele requisitado, ou não, ou, ainda, manifestado, ou não, a vontade de nela comparecer. Alguns precedentes citados: RHC 81322/SP (DJU de 12/3/2004); HC 75030/SP (DJU de 7/11/97); HC 70313/SP (DJU de 3/12/93); HC 69203/SP (DJU de 8/5/92); HC 68436/DF (DJU de 27/3/92); HC 68515/DF (DJU de 27/3/92). “.

O que acaba de ser transcrito revela patente descomprometimento do STF com as garantias (do processado) previstas tanto no Pacto Internacional dos Direitos Civis e Políticos (da ONU) (“toda pessoa acusada de um delito terá direito a (…) estar presente no julgamento” (art. 14, 3, d) e implicitamente na Convenção Americana sobre Direitos Humanos (da OEA) (“direito do acusado de defender-se pessoalmente”; “direito da defesa de inquirir as testemunhas presentes” etc. art. 8.º, 2, d e f).

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A violação (pelo STF) ao art. 1.º da CADH é mais do que evidente. A parte sucumbente (interessada) tem todo direito de levar à Comissão Interamericana mais um caso de violação da CADH. Diz referido dispositivo que “Os Estados Partes da Convenção se comprometem a respeitar os direitos e garantias nela reconhecidos e a garantir seu livre e pleno exercício em favor de toda pessoa que está sujeita à sua jurisdição”. O STF, nesse caso (RE 602.543, rel. Min. Cezar Peluso), em lugar de assegurar ao réu o pleno exercício do seu direito de presença, ao contrário, colocou-se em linha de confronto com a Convenção Americana, proferindo decisão inconstitucional e inconvencional.

O mais estarrecedor foi o fundamento para se violar a CADH: de acordo com o julgado (ora comentado) o réu preso “não teria manifestado expressamente intenção de participar da audiência”. Esclareceu-se que, no caso, o defensor fora intimado da data da expedição da precatória e da data da audiência realizada no juízo deprecado, não havendo sequer indício de que o réu desejasse comparecer. Essa exigência (de o réu ter que manifestar seu desejo de comparecer à audiência de oitiva de uma testemunha de acusação) é pura invenção da maioria do STF, que está “legislando” sem ter competência constitucional para tanto. Onde está escrito, no direito vigente, que o réu só tem direito de comparecer à audiência quando manifesta esse desejo? Pura invenção da maioria do STF que, paralelamente à sua sapiência invulgar, uma vez ou outra descamba para o indevido processo criminal, criando exigências totalmente divorciadas do ordenamento jurídico vigente.

Sensatas e convencionalmente incensuráveis, no caso, foram as manifestações de Marco Aurélio e de Celso de Mello, fundadas nos precedentes HC 93503/SP (DJE de 7/8/2009) e HC 86634/RJ (DJE de 23/2/2007), que proviam o recurso por vislumbrar transgressão ao devido processo legal, asseverando que a presença do acusado na audiência constituiria prerrogativa irrevogável, indisponível, sendo irrelevante o fato de ter sido ele requisitado, ou não, ou, ainda, manifestado, ou não, a vontade de nela comparecer.

A nossa Corte Suprema, em suma, no que diz respeito ao seu entendimento majoritário no sentido de que é dispensável a presença do réu na audiência de produção de prova, sobretudo quando se trata de testemunha arrolada pela acusação, está negando vigência aos arts. 1.º e 8.º, § 2.º, “d” e “f”, da Convenção Americana sobre Direitos Humanos. Mais uma violação patente aos direitos e garantias dos acusados, que pode ensejar novamente a condenação do Brasil.

Luiz Flávio Gomes é doutor em Direito penal pela Universidade Complutense de Madri, mestre em Direito Penal pela USP e diretor-presidente da Rede de Ensino LFG. Foi promotor de Justiça (1980 a 1983), juiz de Direito (1983 a 1998) e advogado (1999 a 2001). www.blogdolfg.com.br