Direito ao pai

Vinícius e Toquinho, juntos, compuseram uma das mais lindas peças do cancioneiro popular brasileiro. O filho que eu quero ter. Ciclo vital e paternidade se entrelaçam de forma a não se poder distinguir o viver da condição de ser pai. O filho acalentado como sonho, no entardecer que põe limite à vida fugaz, preenche a enorme falta que na alma grita por uma razão que a razão desconhece.

O filho, como que, por um milagre do amor, arranca a solidão, instalando a companhia de um igual a mim… No seu beijo a vida me beija e, nos seus por quês que não têm limite, o enigma do doce-amargo do existir se alonga.

Ao cabo, como o finito faz eterno tudo que é bom, um derradeiro beijo se consubstancia em sinal sagrado de que o igual a mim… acalentará acordado, ao entardecer, um sonho lindo de morrer… um filho que se quer ter e, portanto, um sonho de viver.

A projeção da vida nos filhos é simples reflexo do sentido que ela ganhou em razão do pai. É o ciclo vital dos humanos. Nós nos fazemos assim, nos constituímos e nos percebemos à medida que nos vemos refletidos no olhar e na palavra do outro que nos dá o nome e, de conseqüência, singularidade e significado.

O direito ao pai é fundamental à condição de ser humano. Rodrigo da Cunha Pereira lembra que o filme de Walter Salles, Central do Brasil, além de evidenciar a dura realidade do povo brasileiro, com enormes dificuldades inclusive de comunicação, foca sua lente na temática da figura do pai. Josué, o personagem central, filho de uma migrante nordestina, que se fixa no Rio de Janeiro, cresce se constituindo pela figura do pai que nunca chegou a conhecer. Todavia, somente essa imagem do pai não era suficiente. Bem observou Pereira que ?Josué deseja o tempo todo, principalmente após a morte de sua mãe, conhecer o pai falado por ela?(1). Embora a realidade seja muito mais dura que o sonho, a presença viva do pai é buscada como imperativo da vida, ainda que a expectativa se transmute em frustração. A busca pela casa do pai integra o imaginário coletivo ao longo da história da humanidade. Uma das parábolas mais conhecidas dos Evangelhos é a do filho pródigo, que se perde e só se humaniza novamente numa celebração ? num rito ? de reencontro com o pai.

Já há algum tempo, especialmente após a Constituição Federal de 1988, os juristas que se ocupam do Direito de Família têm se lançado em um labor coletivo ? que envolve a doutrina, a jurisprudência, com reflexos às vezes ambíguos na legislação ? com objetivo de afastar o eixo patrimonialista, em torno do qual se estruturou este campo do Direito Civil e para reconstruí-lo a partir de uma visão que privilegia a pessoa humana e sua dignidade intrínseca. Neste processo, o direito ao pai tem merecido especial atenção.

Um decisivo passo, no campo jurídico, foi dado com a consagração do princípio da inocência da filiação. Até 1988, em nome da proteção da paz doméstica, os filhos nascidos fora do casamento eram tidos como ilegítimos e excluídos da condição de filhos em plenitude. A esta virada, no Direito de Família, Gustavo Tepedino chamou de despenalização da filiação(2). O direito ao pai se revelou na vedação a qualquer tipo de tratamento discriminatório entre os filhos havidos fora e dentro do casamento. A isonomia constitucional do tratamento dos filhos além de assegurar-lhes iguais direitos patrimoniais, em o fazendo, busca garantir o direito existencial ao pai. A discriminação até então existente, com efeitos patrimoniais evidentes, implicava, igualmente, um aviltamento da relação existencial entre pai e filho.

O aperfeiçoamento das técnicas da engenharia genética, também, por seu lado, abriu espaço maior para a busca do pai. Ao final do ano de 1992, a Lei 8.560 possibilitou o procedimento de averiguação de paternidade, com a intervenção do Ministério Público e potencializou as ações de investigação de paternidade. Em que pese a importância da prova pericial que se opera por meio do exame de DNA, a qual tem permitido a identificação do vínculo genético entre o investigante e o investigado, esse dado, per se, em muitos casos revela-se insuficiente para dar conta de uma verdade muito mais complexa. Bem pondera Luiz Edson Fachin: ?Se o liame biológico que liga um pai a seu filho é um dado, a paternidade pode exigir mais do que apenas laços de sangue. Afirma-se daí a paternidade sócioafetiva que se capta juridicamente na expressão da posse de estado de filho(3).?

A noção de posse de estado de filho, que era evocada, antes, apenas como prova subsidiária de filiação, nos casos de perda do registro civil, tornou-se central nas reflexões sobre a paternidade sócioafetiva. A verdade biológica não pode ser considerada como instância última e única do sentido jurídico de filiação. A relação paterno-filial não é simplesmente um dado, mas é antes um construído. A posse de estado de filho se revela pelo tratamento recíproco entre pai e filho, pela imputação do nome do pai ao filho e pelo reconhecimento da relação paterno-filial pela comunidade em que vivem.

Nesta linha de idéias, justifica-se a reiterada crítica feita à norma estampada no art. 1.601 do Código Civil de 2002 que tornou perpétua a ação negatória de paternidade.

Ao correspondente artigo do Código de 1916 se fazia crítica porque era evidente que os exíguos prazos decadenciais nele referidos foram fixados para trazer estabilidade a instituição familiar e para tornar firme a presunção pater is est, vale dizer, a presunção de que é pai o marido da mãe. Todavia, ao tornar esta ação não sujeita a prazos decadenciais, o codificador de 2002 abriu a possibilidade de que o filho perca a condição de filho, de um momento para o outro. Ao teor da mera letra da lei, um adolescente de 15 anos poderia ser privado da condição de filho, caso o pai, depois de descobrir não ser seu ascendente genético, ingressasse com ação negatória de paternidade.

O exercício da ação negatória da paternidade, a qualquer tempo, tem sido rechaçado por diversos civilistas. Neste caso, o direito ao pai ficaria comprometido se, ao filho, não coubesse a exceção de posse de estado. A defesa da condição de filho, construída ao longo dos anos e o direito ao pai são, como se procurou evidenciar, direito fundamental. Nessa direção aponta a melhor doutrina e, também, as mais coerentes propostas de alteração legislativa. Em circunstância como essa se faz necessária ?a distinção entre ascendente genético e pai, eis que a paternidade é um conceito jurídico, enquanto que a ascendência é uma definição técnica que pode subsidiar, de modo não absolutamente vinculante, o resultado jurídico?(4).

Esta rápida menção ao tratamento contemporâneo dado ao direito ao pai, por si só revela que o Direito Civil tem absorvido o afeto como um valor jurídico de primeira grandeza. Há, portanto, sinais de que a racionalidade jurídica ? afeta, no mais das vezes, a uma lógica cartesiana ? pode abrir-se à poesia para apreender o humano, o demasiadamente humano, como é a figura do pai na música de Vinícius e Toquinho:

É comum a gente sonhar, eu sei,
Quando vem o entardecer
Pois eu também dei de sonhar
Um sonho lindo de morrer.

Vejo um berço e nele eu me debruçar
Com o pranto a me correr.
E assim, chorando, acalentar
O filho que eu quero ter.

Dorme, meu pequenininho,
Dorme que a noite já vem.
Teu pai está muito sozinho
De tanto amor que ele tem.

De repente o vejo se transformar
Num menino igual a mim
Que vem correndo me beijar
Quando eu chegar lá de onde eu vim.
Um menino sempre a me perguntar
Um por quê que não tem fim.
Um filho a quem só queira bem
E a quem só diga que sim.

Dorme, menino levado,
Dorme que a vida já vem.
Teu pai está muito cansado
De tanta dor que ele tem.

Quando a vida, enfim, me quiser levar
Pelo tanto que me deu,
Sentir-lhe a barba me roçar
No derradeiro beijo seu.
E ao sentir também sua mão vedar
Meu olhar dos olhos seus,
Ouvir-lhe a voz a me embalar
Num acalanto de adeus:

Dorme, meu pai, sem cuidado,
Dorme que ao entardecer
Teu filho sonha acordado
Com o filho que ele quer ter.

Notas:

(1) PEREIRA, Rodrigo da Cunha. Pai por que me abandonaste? In: PEREIRA, Tânia da Silva. O melhor interesse da criança: um debate interdisciplinar. Rio de Janeiro: Renovar, 2000, p. 583.

(2) TEPEDINO, Gustavo. A disciplina jurídica da filiação na perspectiva civil-constitucional. In: TEPEDINO, Gustavo. Temas de Direito Civil. Rio de Janeiro: Renovar, 2001, p. 397.

(3) FACHIN, Luiz Edson. Da paternidade: relação biológica e afetiva. Belo Horizonte: Del Rey, 1996, p. 37.

(4) FACHIN, Luiz Edson. Direito além do novo Código Civil: novas situações sociais, filiação e família. In: Revista Brasileira de Direito de Família. Porto Alegre: Síntese, IBDFAM, v. 5, n 17, abr/maio, 2003. p. 28.

Marcos Alves da Silva é professor de Direito Civil e Coordenador do Curso de Direito do UnicenP (Centro Universitário Positivo). Professor de Direito Civil do Curso de Direito da Unibrasil (Faculdades do Brasil). Professor da Escola da Magistratura do Paraná (EMAP). Advogado em Curitiba. Mestre em Direito das Relações Sociais pela Universidade Federal do Paraná. Membro do Instituto Brasileiro de Direito de Família IBDFAM.

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