A teoria do tipo penal (que teve início com Beling, em 1906) ganhou nova dimensão a partir da concepção constitucionalista do delito, fundada na inegável aproximação entre o Direito penal e a Constituição. A teoria constitucionalista enfoca o delito como ofensa (concreta) ao bem jurídico protegido (lesão ou perigo concreto de lesão ao bem jurídico) (cf. GOMES, Luiz Flávio, Princípio da ofensividade em Direito penal, São Paulo: RT, 2002). Não há crime sem lesão ou perigo concreto de lesão ao bem jurídico (nullum crimen sine iniuria). Esse lado material do delito (ofensa ao bem jurídico), que antes recebia tratamento dentro da antijuridicidade, passou a ganhar relevância também dentro da tipicidade.
Sublinhe-se, de outro lado, que por força do princípio da intervenção mínima, essa ofensa deve ser grave (intolerável) e o bem jurídico sumamente relevante. Crime, portanto, nada mais é que uma ofensa grave a um bem jurídico relevante protegido pela lei.
De outro lado, a partir dessa premissa cabe concluir que a tipicidade penal é composta de três dimensões: (a) tipicidade formal-objetiva + (b) tipicidade material-normativa (tríplice exigência) + tipicidade subjetiva (nos crimes dolosos).
No tempo do funcionalismo de Roxin e de Jakobs, a segunda dimensão era só normativa (com dupla exigência: imputação objetiva da conduta e imputação objetiva do resultado). Por força da teoria constitucionalista, a segunda dimensão é material-normativa e conta com tríplice dimensão (imputação objetiva da conduta, resultado jurídico relevante e imputação objetiva do resultado).
A tese central da teoria constitucionalista do delito, como se vê, consiste em concebê-lo como ofensa a um bem jurídico assim como a inserção dessa ofensa dentro da tipicidade, ao lado da imputação objetiva. A dimensão normativa da tipicidade passou a ser material-normativa, justamente porque ao lado da imputação objetiva está a exigência de um aspecto material, que é o resultado jurídico relevante (presente em todos os crimes). Tanto o bem jurídico quanto a sua ofensa, que antes andavam perambulando pela teoria do delito como estrelas perdidas, passaram a ter relevância ímpar.
Ao lado dos clássicos princípios do Direito penal (legalidade, culpabilidade, responsabilidade subjetiva etc.) dois novos passaram a ocupar relevante espaço: princípio da exclusiva proteção de bens jurídicos e princípio da ofensividade (que é chamado por Zaffaroni e Ferrajoli, dentre outros, de princípio da lesividade).
Sintetizando:
(a) da primeira dimensão (formal-objetiva) fazem parte: (a) conduta; (b) resultado naturalístico (nos crimes materiais); (c) nexo de causalidade e (d) adequação típica formal (subsunção do fato à letra da lei);
(b) integram a segunda dimensão (material-normativa): (a) a imputação objetiva da conduta; (b) resultado jurídico relevante e (c) imputação objetiva desse resultado;
(c) a terceira dimensão (subjetiva), que só é exigida nos crimes dolosos, é composta (a) do dolo e, eventualmente, (b) de outros requisitos subjetivos específicos.
Enfatizando: depois de constatada a tipicidade formal-objetiva (primeira dimensão), fundamental é também verificar a tipicidade material-normativa (segunda dimensão), que é composta (obviamente) de requisitos puramente normativos (imputação objetiva da conduta, resultado jurídico relevante e imputação objetiva do resultado). Nos crimes dolosos ainda se requer a imputação subjetiva (terceira dimensão, constituída do dolo e eventualmente outros requisitos subjetivos específicos).
Exemplificando: no caso do homicídio ou do aborto, por exemplo, não basta (para a tipicidade penal) constatar a causação de uma morte ou de um fato abortivo (a parte objetiva-formal) ou mesmo a sua causação dolosa (dimensão objetiva mais subjetiva). Mais que isso (e, aliás, antes da verificação da imputação subjetiva): fundamental agora é perguntar se a conduta causadora da morte foi praticada no contexto de um risco permitido ou proibido, se desse risco derivou um resultado jurídico e se esse resultado jurídico tem direta conexão com o risco criado). Em primeiro lugar e desde logo, portanto, cabe perguntar: o risco gerado (para o bem jurídico) é ou não desaprovado juridicamente?
Para que haja responsabilidade penal, como se vê, já não basta a simples causação objetiva de um resultado (mero desvalor do resultado). Isso é necessário, mas não é suficiente. A tipicidade penal, de outro lado, já não é tão-somente formal ou fático-legal (ou formal-objetiva). É também material-normativa. Causar não é a mesma coisa que imputar. Causação é distinta da imputação. Por isso que o art. 13 do nosso Código Penal diz: ?O resultado, de que depende a existência do crime, só é imputável a quem lhe deu causa?. O causar está no mundo fático (mundo da causalidade). A imputação pertence ao mundo axiológico (ou valorativo). O causar é objetivo (pertence ao mundo da causalidade, ao mundo fático). A imputação é normativa (depende de juízo de valor do juiz). O causar é formal. A imputação é normativa e o resultado é requisito material (de garantia).
Causação e imputação, em suma, são conceitos complementares, porém, distintos. Depois de comprovada a causação de um resultado (naturalístico), impõe-se examinar, numa segunda etapa, a imputação assim como a produção de um resultado jurídico relevante.
Do exposto se extrai a seguinte conclusão: nem tudo que foi mecanicamente causado pode ser imputado ao agente, como fato pertencente a ele (como obra dele pela qual deva ser responsabilizado). Aquilo que se causa no contexto de um risco permitido (autorizado, razoável) não é juridicamente desaprovado, logo, não é juridicamente imputável ao agente. Na lesão esportiva (dentro das regras do esporte) há a causação de um resultado, mas isso não pode ser objetivamente imputado ao agente (porque se trata de risco permitido). Diga-se a mesma coisa em relação à intervenção cirúrgica, à colocação de ofendículos, ao exercício de um direito etc.. Tudo que se produz no contexto de riscos permitidos não é objetivamente imputável (não é fato típico, ou melhor, não é um fato material e normativamente típico). E.T.: sobre o tema veja artigo mais completo no www.proomnis.com.br).
Luiz Flávio Gomes é doutor em Direito Penal pela Faculdade de Direito da Universidade Complutense de Madri, Mestre em Direito penal pela USP, secretário-geral do IPAN (Instituto Panamericano de Política Criminal), consultor e parecerista, fundador e presidente do IELF PRO OMNIS: 1.ª Rede de Ensino Telepresencial da América Latina www.proomnis.com.br