Eliseu Raphael Venturi

“Diante da dor dos outros”, a propósito do livro de Susan Sontag: uma reflexão pertinente ao direito

A profusão de imagens de sofrimento ocorre, cotidianamente, nas mais diversas publicações: impressos, internet, canais de televisão e processos judiciais veiculam narrativas verbais e imagéticas de graduais intensidades do sofrimento humano, dispondo-as ao acesso do público e as tornando parcelas das histórias cognoscíveis a todos aqueles que dispõem de um mínimo de imaginação, de capacidade e de vontade interpretativas ante os estímulos lingüísticos.

Além destas imagens criadas por artistas, por fotojornalistas, por peritos e demais profissionais, armazenadas em suportes de papel ou digitais, o contexto da violência urbana possibilita-nos também testemunhar diretamente os infortúnios nascidos em relações sociais ou em decorrência de fenômenos da natureza.

Assim, em curtos trajetos podemos nos deparar com acidentes, assaltos, pessoas indignamente condenadas a viver nas ruas… Infelizmente a lista é extensa! E desta vez nossa retina é o local onde se gravam as imagens: com mais força, temos a constatação sensorial da adversidade que sentimos, literalmente, na pele; a câmara escura são os nossos olhos.

Seja qual for a natureza e os suportes, tem-se que, além das particularidades dos casos concretos, as imagens de dor alheia remetem-nos aos contextos de violações de direitos fundamentais e de direitos humanos.

Representam, portanto, as materializações dos momentos em que, por determinados motivos, decidiu-se, no âmbito público ou privado, afastar a esfera protetora que os direitos geram sobre os seus titulares. E tal decisão impinge, por decorrência lógica, obstáculos ao desfrute de uma vida como o mínimo de segurança, de tranqüilidade e de dignidade.

O tema imagético passa a ser, portanto, de interesse basilar àqueles que se dedicam ao estudo e à prática do Direito, visto que é fonte de temas caríssimos ao Direito Constitucional.

Este ramo do Direito, um dos grandes esteios para se pensar todo o ordenamento jurídico, fornece os pontos de partida para argumentações comprometidas com a consecução do sistema de valores constitucionais, que revela um sólido contorno ético, pois na interseção do Direito Constitucional com a Filosofia do Direito encontrar-se-á o norte hermenêutico para se pensar, dizer e, principalmente, praticar e concretizar tanto o Direito quanto a Justiça.

De qualquer modo, seja pelo caminho da Moral ou do Direito, precisamos administrar psiquicamente as imagens que percebemos, seja para prosseguirmos nossas trajetórias de vida, seja para motivarmo-nos à ação política.

Nesse sentido, fica colocada a questão de quais as escolhas fazemos nesta gestão subjetiva do sofrimento alheio. Mínimas noções de empatia e de alteridade obrigam-nos ao convencimento de que compartilhamos daquelas dores.

Um bom começo para tanto, para se destrinchar essa questão, é o livro da intelectual norte-americana Susan Sontag (1933-2004), “Diante da Dor dos Outros”, publicado em 2003.

Abordando principalmente os aspectos sociais da guerra, com ênfase nos registros de fotojornalismo, mas sem abandonar um breve histórico das imagens de sofrimento ao longo do desenvolvimento da cultura ocidental em outras criações como a literatura, pintura, escultura e gravura , Sontag traça instigantes argumentações que constantemente motivam o leitor a sondar as suas posições enquanto espectador de padecimentos, de angústias e de penúrias alheias, humanas.

Como enfatiza a autora, “as fotos são meios de tornar “real’ (ou “mais real’) assuntos que as pessoas socialmente privilegiadas, ou simplesmente em segurança, talvez preferissem ignorar” (SONTAG, 2003, p. 12).

Foi proposto um encontro para se discutir o assunto durante a II Semana Extensionista do Unicuritiba, sob orientação da Professora Doutora e constitucionalista Gisela Maria Bester.

Buscou-se a compartilhar com a comunidade acadêmica a apreciação das imagens referenciadas por Sontag, bem como dos fundamentos filosóficos do livro “Diante da Dor dos Outros”, conjugados com os valores constitucionais brasileiros vintenários, iniciando-se a breve exploração do problema com a discussão sobre alteridade, nos sentidos psicológico e antropológico do termo (com base em autores como Emmanuel Lévinas, Charles Taylor, Michael Taussig, entre outros).

Objetivou-se a levar os participantes, segundo a óptica do livro de Sontag, a pensar sobre os limites entre técnica, realidade e ética, problematizando-se a profusão de imagens na contemporaneidade, refletindo-se sobre os parâmetros das representações de guerra, dor, sofrimento, desgraça e crueldade, muitas vezes concorrendo ou sobrepondo-se às imagens de prazer, volúpia e estímulo ao consumo segundo as narrativas das seduções idílicas do marketing.

Acreditou-se que essa proposta de reflexão poderia revelar aspectos da realidade que nem sempre os textos jurídicos ou a tradição essencialmente verbal do ensino do Direito permitem alcançar e que, a despeito disso, são elementos presentes no cotidiano jurídico.

Problematizar as posições pessoais e coletivas assumidas perante as imagens de sofrimento, assim como sobre quais impressões tais eventos despertam em nosso íntimo fuga ou solidariedade, indiferença, anseio pela paz ou sentimento de vingança serve como metáfora para o profissional do Direito: relações jurídicas podem ser entendidas como uma forma de processamento de imagens da desgraça do outro.

De quais modos se decodificam interpretam-se tais imagens e com qual comprometimento hermenêutico? Este parece ser um questionamento perspicaz, ao qual Sontag motiva.

Se as imagens de sofrimento ainda nos chocam, ou se ativam nossos traços do humanismo, ou se transformaram-se em mais uma forma de entretenimento e de motor para auferição de lucro, são hipóteses que formam os questionamentos levantados por Sontag. Hipóteses sem respostas definidas, mas com muitos caminhos.

Nesse liame metafórico, interdisciplinar, em constante processo e aberto à reflexão se inseriu o problema da interpretação constitucional enquanto desafio axiológico a todos os ramos do Direito. Foi a partir disso que se propôs pensar os impactos subjetivos das imagens da dor dos outros das quais diante se encontra.
Estímulos para tanto não faltam.

Referência do livro: SONTAG, Susan. Diante da dor dos outros. São Paulo: Companhia das Letras, 2003. 107 p.

Eliseu Raphael Venturi é graduado em Licenciatura em Artes Visuais pela Faculdade de Artes do Paraná, FAP/PR (2003-2006). Graduando em Direito pelo Centro Universitário Curitiba, Unicuritiba (2006-2010). eliseurventuri@gmail.com

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