O ministro Nelson Jobim, do Supremo Tribunal Federal (STF) (foto), confessou em notícia recente que, enquanto comprador inveterado de livros, costuma ir às livrarias acompanhado de um notebook, em que mantém registrados os livros já adquiridos, a fim de evitar duplicação, no entusiasmo das compras.
Segundo as estatísticas mais otimistas, os exemplares de livros vendidos anualmente no Brasil não chegam a 260 milhões, o que não chega a dois exemplares/ano por habitante. O ministro Jobim é uma exceção: ele deve entrar para os cálculos da incultura livresca brasileira no lugar de muitos outros não-consumidores, carentes de livros e, provavelmente, de notebook, estantes e controles.
Esta é mais uma das nossas conquistas de desigualdade social. E de cidadania. Acrescento, sem medo de errar, da conquista da capacidade de escolha.
Neil Postman, no excelente O fim da educação: redefinindo o valor da escola, não hesita em afirmar que os jovens, seus pais e professores "precisam ter um deus a quem servir", sem o qual a escola é inútil. Explica melhor esse conceito, retirando dele o aspecto de religiosidade, para atribuir-lhe o de uma "narrativa grandiosa, dotada de suficiente credibilidade, complexidade e força simbólica para nos permitir organizar a vida em torno dela". Um relato "que fala de origens e visiona um futuro, um relato que constrói ideais, preceitua regras de conduta, provê uma fonte de autoridade e, acima de tudo, transmite uma impressão de continuidade e propósito." É a esse fim que ele está se referindo no título de seu livro: trata-se de um (ou alguns) objetivo, poderoso, persistente, envolvendo passado e futuro.
Numa sociedade como a nossa, sem fins, sem meios, sem sentido, a escola que a serve parece, por vezes, muito inútil. Os combates que deveria travar contra a ignorância e o isolamento são travados pela ignorância da violência, da fome, do desamor ao estudo, da inexistência de "narrativas poderosas". Ela vive a contradição de projetos pedagógicos de grande relevância e atualidade convivendo com as mais diversas ingerências não-educacionais, a impingir-lhe a obrigatoriedade de conteúdos, que visam abrigar a incompetência social para tratá-los devidamente; e metodologias de facilitação e maternalismo, que disfarçam, sob a máscara do afeto, o protecionismo infantilizador.
Longe de mim defender a escola da palmatória, da face carrancuda, do apagamento das diferenças. Também longe de mim a defesa do vale-tudo científico, do endeusamento da tecnologia e do mercado. Até mesmo a leitura, bandeira defendida por mim como uma narrativa de ideais, regras, propósito e autoridade, para retomar Neil Postman, não me parece a "panacéia universal". Ainda consigo considerar na leitura aspectos viciados e viciosos, deturpações e mal-entendidos.
No entanto, considero que a leitura e a educação representam duas instituições sociais, dois baluartes e dois objetivos de qualquer sociedade minimamente civilizada. Felipe Alliende e Mabel Condemarín, na obra A leitura: teoria, avaliação e desenvolvimento, relacionavam, em 2002, leitura a desenvolvimento, tomando por base os meios de comunicação de massa: "Nos países desenvolvidos, os novos meios incrementam a leitura; nos países menos desenvolvidos, ela entra em crise." E continuam: "Nos países menos desenvolvidos (…) aumenta o número de crianças que ao fim de dois anos ou mais de ensino ainda não sabem ler. Fora da escola, o hábito da leitura de livros, especialmente literários e científicos, decresce de forma notável."
Pesquisas sobre histórias de leitores dão conta de que as pessoas começam a gostar de ler independentemente de idade, profissão, sexo, escolaridade. Lêem mais quando descobrem o sentido, a razão por que necessitam ler. Lêem quando uma narrativa poderosa toma forma em sua vida.
Talvez o livro seja mais generoso do que meios de comunicação de massa, mais absorventes, mais exclusivos. Leitores de livros passam ininterruptamente para outros suportes, que divulgam imagens, sons, movimentos. O reverso dessa situação ocorre mais raramente. Empolgados com jogos e botões, os olhos infantis e adolescentes convergem para as telas. Empolgados por jogos de palavras e pelo imaginário, os leitores transferem-se criticamente para outras páginas e telas.
Para servir ao livro, o notebook do ministro passeia entre as estantes. É ferramenta, não é o usuário. É meio, não o fim.
No entanto, nem só à narrativa poderosa dos meios de comunicação a escola serve na atualidade. Ela assumiu também o discurso limitador do mercado, em que produtos em abundância devem aparecer, mesmo que redescubram a roda, ou se mostrem inúteis. Em busca da produtividade a qualquer custo, a escola atrelou-se a um ativismo e à prática enquanto fim que anulam qualquer valoração do pensamento. Faz-se muito, pensa-se cada vez menos. A dificuldade em relacionar conhecimentos e em exercer a capacidade de inferência é visível em todos os estágios do ensino. Para a sociedade do pensamento único a escola do pensamento mínimo. Talvez esse seja "o melhor dos mundos possível", o jardim que deuses tão poderosos quanto ocultos querem que, incansavelmente, cultivemos.
A estrada aplainada pela literatura
Geraldo de Almeida (UFPR/ FAO)
Quisera poder localizar dentro de mim cada um dos livros que já li. Quisera eu ter o poder para fazer isso. Talvez essa minha busca pudessse, de uma forma ou de outra, dizer ao autor dos livros que mais me marcaram, o quanto deles está dentro de mim e o quanto as palavras deles me vivificam.
Não sei se isto seria importante para eles, mas o fato é que, em determinados momentos da nossa vida pessoal e profissional, nos surpreendemos fazendo essas reflexões: o que tenho e quanto tenho de cada livro que li? Certamente na resposta estarão autores dos quais nem sequer lembramos mais. Há livros que lemos talvez um ou outro capítulo, há livros que lemos uma, duas ou três vezes. Há ainda os livros que nunca lemos, embora o admiramos e o queremos tomá-lo um dia. Enfim, há vários tipos de relações que podem ser estabelecidas com os livros.
Uns tivemos que tomar em função da obrigatoriedade da leitura, outros em função da imposição do meio social, no qual estamos inseridos, que nos cobra determinadas leituras, e há ainda… (ufa!!!), aqueles que podemos livremente escolher. Não posso dizer que nesses últimos estão os que nos dão prazer, ou mais prazer, porque essa já é uma questão na qual não me meto mais.
Discutimos à exaustão se um livro tem que nos dar prazer ou não e no final de cada uma destas discussões o que nos resta é aceitar o velho paradigma do discurso politicamente correto: "Pode ser, mas não necessariamente". Assim, ao invés de me atentar aqui na pertinência ou não da liberação do prazer dos textos literários, tentarei fazer uma outra coisa: deixarei algumas impressões das boas surpresas que já tive com livros. Alguns dos volumes que mais me surpreenderam chegaram até mim sem pretensões maiores. Eles foram, pouco a pouco deixando um certo sabor em meus olhos e vagarosamente me envolveram com suas tramas e suas palavras, outrora amargas para mim. O fato é que buscamos em cada livro algo que talvez em principio não temos muito definido o que é. É o poder da leitura e as alquimias do ato de ler que vão elaborando um determinado pacto, uma relação entre leitor e obra, e o resto acaba acontecendo. Descompromissada ou não a química desta relação surge, involuntariamente (se não tínhamos maiores pretensões em relação àquilo que se lê agora). Refiro-me ao fato de termos sempre nos preocupado com aquela falsa liberdade de escolha que poderia ser dada ao leitor, mas que não se processa desta maneira. O poder das mídias e a forma da comunicação de massa nos envolvem e nos moldam de maneiras tão singelas, e por vezes tão discretas, que no final do processo já não sabemos se somos nós mesmos ou quantos, dos outros e de suas ideologias, estão impregnados em nós. Conduzidos ou não fazemos determinadas escolhas ou não as fazemos.
Importante é saber que todas as nossas escolhas de leituras podem dar um resultado ao final, seja ele bom (o que nos levaria a recorrer ao mesmo livro mais tarde ou ainda ao mesmo autor ou ao formato de texto), ou ruim (o que nos daria uma certa aversão ao tipo do texto, às idéias e trabalhos do escritor, e isso nos afastaria deles). Porém, é tão magnífico o ato de ler que não são raras as vezes que nos pegamos com os ditos volumes abomináveis nas mãos. Um livro pode ter o seu momento hoje, amanhã e até mesmo eternamente em nossas mãos. Quantos são os títulos que já lemos na infância, na adolescência e agora na vida adulta? E o mais interessante é que em cada uma das leituras tivemos, ou ainda temos a sensação de estar com ele pela primeira vez. Não é possível coordenar por completo uma atividade tão majestosa como esta. O ato de ler consiste em um verdadeiro ato da democracia. Mesmo sabendo que lemos o que a nós se torna possível (me refiro ao alcance e às referências que uma leitura pode desencadear), ninguém consegue mensurar o quanto daquele texto vai se fixando em nós. O encantamento, as indagações, as viagens iniciadas pelo imaginário é para cada um constituída de uma maneira. É uma singularidade que em nenhum outro ato da vida humana se processa com tanta magnitude. A leitura e tudo que advém dela carregam muitas particularidades. É o mundo que se aplaina por um verdadeiro exército de livros, lidos ou sentidos pelo leitor. Desta forma, é quase impossível localizar o que cada um de nós tem dos inúmeros livros que tomamos. Mas uma coisa é certa, não saímos deles, mesmo que tenhamos reprovado por completo tudo o que ali possuía, da mesma forma que neles adentramos. Isso quer dizer que se tivéssemos que dizer o quanto dos livros mais maravilhosos que lemos existem em nós, antes teríamos que fazer a lista dos muitos títulos que odiamos e o que eles deixaram em nós, para sempre. Um leitor se constrói com bons e com maus livros e quem souber quais são eles, por favor, diga-nos e quem nunca amou um livro ruim que atire a primeira pedra.
