Fábio Rodrigo Victorino
Muito se tem falado nos últimos anos acerca da desaposentação, que seria a possibilidade de o segurado renunciar à aposentadoria que já recebe e aproveitar o tempo de serviço/contribuição utilizado para um novo benefício de valor superior, seja através do Regime Geral de Previdência (INSS) ou de regime próprio vinculado a determinado ente público.(1)
A idéia é que o aposentado vá à Agência da Previdência Social responsável pelo processamento de sua aposentadoria e pleiteie o desfazimento do ato concessivo (ou seja, faça a ?desaposentação?). Pede também uma certidão do tempo de serviço para usar na nova aposentadoria.
O objetivo é simples: como ainda trabalhava e contribuía, mesmo aposentado, o agora ?desaposentado? poderia somar essas novas contribuições e aposentar-se com valor maior.
Como se vê, tal possibilidade se mostra muito útil àquelas pessoas que, mesmo depois de aposentadas, mantêm atividade profissional que exige o recolhimento de contribuições previdenciárias (Lei n.º 8.213/91, art. 11, § 3.º).(2)
O tema chamou a atenção principalmente após o Superior Tribunal de Justiça passar a se manifestar favoravelmente à tese, assentando que ?a aposentadoria é direito patrimonial disponível, passível de renúncia, portanto?. Logo, ?estando cancelada a aposentadoria no regime geral, tem a pessoa o direito de ver computado, no serviço público, o respectivo tempo de contribuição na atividade privada?.(3)
Em resumo, os principais argumentos utilizados pelos defensores da desaposentação são: (a) o direito à aposentadoria é meramente patrimonial e, como tal, pode ser renunciado pelo beneficiário; e (b) não há no ordenamento lei que proíba a desaposentação.
Mas há um outro problema que deve ser enfrentado: o segurado que se utiliza da desaposentação estaria obrigado a devolver os valores recebidos enquanto permaneceu aposentado?
Embora tenha prevalecido no Judiciário entendimento de que não é obrigatória tal devolução, é preciso rever essa posição.
Como se sabe, o princípio da legalidade é encarado sob dupla perspectiva: aos cidadãos é dado o direito de fazer tudo aquilo que a lei não proíba; já em relação à Administração o princípio representa limitação à atuação estatal.(4) Trata-se de liberdade dentro da lei, na medida em que a Administração só pode fazer o que a lei antecipadamente autorize.(5)
Diriam os extremistas: a ?lei? que limita o Estado é o texto normativo criado pelo Legislativo. Logo, ausente texto proibitivo, seria possível a desaposentação.
Tal idéia é superada. Basta atentar para a distinção entre texto e norma.(6)
As normas jurídicas não podem se reduzir em meros enunciados lingüísticos rotulados de lei. São, na verdade, o produto da interpretação de tais textos, sempre levando em conta fatos da vida real.(7) A tarefa do intérprete consiste na produção da norma aplicável ao caso concreto, sendo possível sua criação a partir de vários textos legais.(8)
É justamente isso que acontece com a desaposentação: o caráter irrenunciável das aposentadorias (Decreto n.º 3.048/99, art. 181-B) nasce da interpretação sistemática do art. 18, § 2.º (possibilita aos aposentados que retornam ao trabalho somente o gozo do salário-família, salário-maternidade e reabilitação profissional), do art. 96, III (impede que o tempo de serviço já aproveitado para a concessão de um benefício previdenciário seja novamente empregado) e do art. 122 (autoriza o segurado receber aposentadoria mais vantajosa desde que, preenchido tempo de serviço mínimo, opte por permanecer em atividade), todos da Lei 8.213/91.
A tudo isso se acrescenta a segurança jurídica, na condição de um dos mandamentos do Estado de Direito.(9)
A desaposentação pode ocasionar algumas distorções, colocando os demais segurados em situação de desigualdade.
Imagine-se a situação de um indivíduo que, após se aposentar pelo Regime Geral, é aprovado em um concurso para o cargo de médico. Após completar período mínimo de carência, renuncia a aposentadoria e aproveita o tempo para um novo benefício. O resultado será um manifesto desequilíbrio entre os valores já pagos a título de aposentadoria pelo Regime Geral e a renda mensal inicial de sua nova aposentadoria.
Isso mostra que a desaposentação entra em descompasso com os princípios que sustentam a Previdência Social, embora, seja admitida na maioria de nossos tribunais.
Notas:
(1) Cf., sobre o tema, Fabio Zambitte Ibrahim, Desaposentação: o caminho para uma melhor aposentadoria, 2.ª ed., Rio de Janeiro: Impetus, 2007; Marina Vasques Duarte, ?Desaposentação e revisão dos benefícios do RGPS?, Temas atuais de direito previdenciário e assistência social, Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2003, p. 73-94; João Batista Damasceno, ?Renúncia voluntária à aposentadoria, desfazimento de ato administrativo vinculado e definitivo e direito de certidão de tal ocorrência?, RDA 211/279-280; Ivani Contini Bramante, ?Desaposentação e nova aposentadoria?, Revista de Previdência Social n.º 244, de março de 2001; Wladimir Novaes Martinez, ?Elementos atuais da desaposentação? e ?Aspectos controversos da desaposentação?, Revista IOB Trabalhista e Previdenciária n.º 218, de agosto de 2007.
(2) Art. 11. [..]. § 3.º O aposentado pelo Regime Geral de Previdência Social RGPS que estiver exercendo ou que voltar a exercer atividade abrangida por este Regime é segurado obrigatório em relação a essa atividade, ficando sujeito às contribuições de que trata a Lei n.º 8.212, de 24 de julho de 1991, para fins de custeio da Seguridade Social. (Incluído pela Lei n.º 9.032, de 1995).
(3) STJ, REsp n.º 692.628, Rel. Min. Nilson Naves, DJU 5/9/2005. Em sentido análogo, cf. AGREsp n.º 497.683, Rel. Min. Gilson Dipp, DJU 4/8/2003; REsp n.º 487.770/DF, Rel. Min. Félix Fischer, DJU 17/12/2003.
(4) André de Laubadére, Traité de Droit Administratif, 7.ª ed., v. I, Paris: Libarie Générale de Droit et de Jurisprudence, 1976, p. 255.
(5) Renato Alessi, Sistema Instituzionale del Diritto Amministrativo Italiano, 3.ª ed., Milão: Giuffrè Editore, 1960, p. 9.
(6) Sobre tal distinção, no direito alemão, v. Friedrich Müller, Juristische Methodik, 5.ª ed., Berlin: Duncker & Humblot, 1993 e Robert Alexy, Theorie der Grundrechte, Frankfurt: Suhrkamp, 1994, p. 42 e s.
(7) Eros Roberto Grau, Ensaio e Discurso sobre a Interpretação/Aplicação do Direito, 3.ª ed., São Paulo: Malheiros, 2005, p. 82.
(8) Humberto Ávila, Teoria dos Princípios, 5.ª ed., São Paulo: Malheiros, 2006, p. 22.
(9) Sobre o chamado princípio da proteção de confiança, como desdobramento da segurança jurídica, cf. Almiro Couto e Silva, ?Princípios da legalidade da administração pública e da segurança jurídica no Estado de Direito contemporâneo?, RDP 84/46; Gomes Canotilho, Direito Constitucional e Teoria da Constituição, 7.ª ed., Coimbra: Almedina, 2003, p. 257; Karl Larenz, Derecho Justo: fundamentos de ética jurídica. Madri: Civitas, 1985, p. 91.
Fábio Rodrigo Victorino é advogado. E-mail: frvictorino@uol.com.br