O absolutismo levou reis e príncipes ao poder sem limites, enquanto os demais ficavam sob o seu tacão. Sua ?entourage et caterva? perdia até o direito de latir, quanto mais de morder. Exceto nas ditaduras, fórmula cruel e descarada do absolutismo moderno, aquela história de ?o Estado sou eu!? ganhava foros de legitimidade. Não poucos os mandantes coroados acreditavam ter poder divino. Deus no céu e eles na terra e ninguém poderia deixar de curvar-se à sua vontade e ordens sem estar cometendo um ato punível com crueldade. E ainda submetendo-se ao fogo do inferno. Nas ditaduras modernas, a herança de supostos poderes divinos tornou-se dispensável e dispensada. Os ditadores os substituem com os canhões, com a demagogia e com a caneta cheia, armas que não usam petardos, mas cargos e privilégios. Assim apetrechados, distribuem privilégios que vão do nepotismo à posse de capitanias hereditárias, onde os apaniguados fazem e desfazem.
Os partidos políticos servem de instrumento para essa farsa democrática. Muitos são organizações a serviço dos senhores e desenhados como máfias para saquear com proficiência as bases, ou seja, o povo. Assim não foi com o PT, partido que sempre viveu como um Davi, pequeno e atrevido, pronto para com uma singela funda derrubar gigantescos Golias. Tentou, teimosa e heroicamente, por diversas vezes, chegar ao poder. Quase sempre insistiu com uma inegável e notável liderança, a de um simples operário, Lula, figura ímpar na política brasileira. Água mole em pedra dura, tanto bate até que fura. Na vida real acontecem, vez ou outra, esses episódios que mais parecem ficção.
No caso brasileiro e de Lula, poucas são as vozes discordantes, uma delas a de um antigo, respeitado e combatido guru chamado Delfim Neto, imagem obesa em lipídios, protídios e outros ídios e de enorme inteligência e vastos conhecimentos. Graças a essas suas qualidades, vistas como imperdoáveis defeitos, ele foi cartomante de vários governos, da direita a nossa esquerda, mesmo a mais caricata. O PT sempre o odiou, até que o sábio surpreendeu, apoiando com vigor o presidente Lula, e o seu tísico governo. Há poucos dias, em inteligente entrevista à Folha de S. Paulo, Delfim Neto, já septuagenário e, por isso, mais sábio do que sempre foi, fez uma análise muito interessante e procedente do governo de seu antes inimigo figadal e hoje aliado fraternal Lula.
Explicou o deputado Delfim que na última tentativa do PT para chegar ao poder, afinal bem sucedida, não foi o partido que elegeu Lula, mas Lula que elegeu o partido. É preciso ser um sábio para dizê-lo, mas qualquer observador medíocre pode constatar tal verdade. O PT sem Lula iria continuar atirando pedras no Davi de plantão e errando o alvo. Lula, sim, estava apetrechado para derrubar os poderosos de sempre e tomar o seu lugar. Eleito e elegendo o PT, Lula encheu de vento uma agremiação honesta, bem intencionada, mas frágil política e programaticamente.
No poder com Lula, o PT inchou ou encheu-se, vaidoso da ilusão de poderes e qualidades que não tinha e não tem.
Uma centena de falhas e dezenas de escândalos acabaram destruindo a pretensiosa imagem petista, sem sequer arranhar a do presidente Lula. Este aparece diante da opinião pública não como o comandante petista, mas como sua vítima. O PT é hoje o maior inimigo de Lula. Soa como desnecessário andar por aí berrando que quem quer destruir o presidente é a oposição, o PSDB, o PFL e os malandros de agremiações situacionistas. Por isso as pesquisas de opinião pública revelam dados aparentemente paradoxais: um governo com prestígio em declínio e Lula, candidato à reeleição, dando um banho nos adversários e aparecendo como provável vitorioso já no primeiro turno. E porque Lula continua sendo o homem que tem a força, o sábio Delfim Neto mais uma vez lhe empresta seu robusto e sempre requisitado apoio.
