O parecer “inteligente e deduzido com fino engenho” da Advocacia Geral da União (AGU), que embasava a liberação ou o repasse de verbas do Tesouro a estados e prefeituras municipais mesmo durante o período eleitoral, foi considerado ilegal pelo presidente do Tribunal Superior Eleitoral (TSE), Sepúlveda Pertence. A Nação já esperava e aplaude a medida. Trata-se de uma decisão importante que – ninguém tem dúvida – visa salvaguardar a igualdade de oportunidades entre candidatos envolvidos na refrega eleitoral e, em última análise, portanto, salvaguarda a própria democracia. Estabelece a moralidade pelo menos aparente.
A derrota foi do Executivo, que mal dissimulou sua insatisfação diante do decidido. Nos últimos dias distribuiu recursos à mancheia e se preparava para continuar a distribuição com base em projetos ou convênios celebrados, embora muitas obras não tivessem sequer saído das intenções. Como de projetos e acordos o Brasil está cheio, o entendimento solitário de Pertence (ele decidiu em caráter de urgência, remetendo a questão ao plenário da Corte que apreciará a matéria apenas em agosto) foi um ato necessário para que o processo eleitoral não se transformasse numa confusão sem limites, numa discussão sem fim. Ou numa fraude.
Com efeito, o angu já estava formado no Congresso. Dias atrás o experiente senador Antônio Carlos Magalhães subiu à tribuna para, a seu estilo, denunciar os favorecimentos da União a adversários políticos seus na Bahia. “O presidente não tem o direito de fazer isso – dizia ACM enraivecido, como nunca se via há muito tempo – ele devia saber que foi eleito para dirigir um país e não um partido político.” Mais: “Não se dirige uma nação como se comanda um sindicato”.
No Planalto, dizia-se que a regra era boa porque valia para todos. Mas é claro, que em circunstâncias como as atuais, vale mais sempre para os amigos. Ou para os possíveis novos amigos que, de pires na mão, não titubeariam em trocar verba boa e grossa por algum tipo de apoio político. Aos inimigos, diz o ditado, a lei.
O parecer da AGU, segundo bem observou Pertence, era de “fino engenho”, para não dizer matreiro ou mal intencionado. Partia da premissa segundo a qual “a justificação da obra ou do serviço foi concebida antes do período de vedação e não pode, por tal motivo, ser considerada conduta vedada”. Por isso, sustentava o parecer, “a interpretação que considerasse a obra ou serviço não fisicamente em andamento, depois do dia limite, como obra ou serviço eleitoralmente ilícito teria que pressupor necessariamente que o acordo ou avença administrativamente firmados antes desse dia seriam igualmente ilícitos”. Santa paciência!
Sepúlveda Pertence não caiu na armadilha e respondeu que para o eleitor comum não são os trâmites burocráticos, que necessariamente precedem a obra, mas é o início efetivo da construção que faz visível a concretização do empreendimento governamental “e aguça a expectativa dos benefícios que sua conclusão possa trazer ao público”. É a partir daí que se tem – como observou – na linguagem popular, uma obra em andamento. É exatamente “esse valor simbólico do começo efetivo da construção da obra, que dá a medida do seu impacto eleitoral” que a lei veda seja regado com verbas públicas na antevéspera dos pleitos locais.
Olhando à distância, esse debate sobre quando uma obra nasce de fato parece ingênuo. Não há ingenuidade nenhuma, entretanto, no golpe sutil engendrado pela inteligência do Executivo cujos representantes ainda inconformados – como bem deixou claro o ministro José Dirceu, da Casa Civil – pretendem mudar a lei ante a alegação de que, como está, há prejuízo para a sociedade, que se vê privada de obras importantes. Que a mudem, se o Congresso assim entender. Mas até lá que fique claro, como sublinhou o líder do PFL na Câmara, José Carlos Aleluia: essa decisão do Judiciário mostra que a democracia no Brasil está amadurecendo. Obras importantes podem ser feitas fora do período eleitoral.