Debate jurídico sobre a TV Digital

A introdução da TV Digital é oportuna para refletirmos sobre o seu regime jurídico, avaliando seu estado atual e a sua evolução futura tão necessária para a democracia, em termos de pluralidade de meios e de conteúdo audiovisual.

O modelo tradicional do serviço de televisão por radiodifusão, representado pela TV aberta, está fundado na matriz clássica de serviço público, disciplinado na forma da desatualizada Lei n.º 4.117/62.

A União é a titular do serviço, daí porque o particular somente poderá explorá-lo mediante concessão.

Tanto a doutrina quanto a jurisprudência afirmam que a TV por radiodifusão é um serviço público.

Não é, contudo, um regime favorável à liberdade de radiodifusão. Se determinadas empresas quiserem prestar o serviço de televisão somente poderão fazê-lo mediante a obtenção da concessão.

Em que pese o respeitável entendimento, proponho uma nova compreensão sobre o tema a partir do enquadramento dos serviços de televisão no sistema de radiodifusão privado como atividade econômica em sentido estrito.

Defendo, então, o afastamento do regime de concessão de serviço público do setor comercial de radiodifusão. Em troca poderá ser aplicada a autorização administrativa para a prestação de uma atividade privada, submetida, porém, à autoridade reguladora. Deve-se reconhecer o direito à prestação do serviço de televisão, uma vez observados os requisitos legais.

O regime de liberdade de radiodifusão, por óbvio, não significa a ausência de regras. Ao contrário, exige a edição de normas favoráveis à liberdade, porém compatíveis com a responsabilidade dos meios de comunicação.

O regime de serviço público não deve ser abandonado, mas evoluir a ponto de servir aos sistemas público e estatal. Ou seja, serviço público é aquele ofertado pelas televisões estatais (TV Justiça, TV Senado, TV Câmara, TV Cultura etc.) e as televisões públicas.

Estas, em verdade, diferentemente, das emissoras estatais, não existem no setor de radiodifusão, mas tão somente no setor de televisão a cabo. Em função disso entendo ser necessária para a democracia a criação de espaços para as televisões comunitárias por radiodifusão.

Por décadas tem ocorrido a aplicação generalizada da noção de serviço público em relação a todos os sistemas de radiodifusão (privado, público e estatal), sem que tenha sido dada a devida atenção aos direitos fundamentais.

A reconstrução a noção de serviço público de televisão é necessária de modo a servir como um efetivo canal de realização dos direitos fundamentais (exemplos: educação, cultura, informação etc).

O instituto da concessão de serviço público utilizado no serviço de televisão por radiodifusão tem servido aos interesses dos concessionários e ao seu propósito lucrativo, ficando, em segundo plano, o interesse público.

A concessão e o respectivo regime de serviço público contribuíram muito mais à formação de reservas de mercado e à concentração de poder econômico do que aos interesses dos usuários dos respectivos serviços.

A concessão tem favorecido aos interesses dos políticos, havendo uma politização excessiva no processo de outorga e de renovação de emissoras de televisão. Nesse aspecto, o direito não tem sido efetivo o suficiente para impedir o cometimento de abusos, a exemplo da propriedade de inúmeras emissoras por políticos.

Daí porque proponho a disciplina dos serviços de televisão por radiodifusão sob o ângulo do mercado.O regime privado é o mais adequado à sua respectiva dinâmica, ainda mais no contexto da convergência das mídias, em qu,e não há mais uma fronteira fechada entre a radiodifusão e telecomunicação. A maior prova desta radical transformação é a recepção do sinal de televisão por computadores e aparelhos celulares.

A relativização da utilização da noção de serviço público e a flexibilização do regime jurídico justificam-se também em virtude da utilização da técnica digital no setor de radiodifusão.

A nova visão serve à democratização da mídia, assegurando-se a existência de múltiplos meios de comunicação e a diversificação do conteúdo na programação de televisão, mediante o desenvolvimento da liberdade de radiodifusão dos agentes econômicos. O serviço de televisão é uma atividade de distribuição de conteúdo audiovisual. Para que isto ocorra é essencial a produção.

Portanto, a utilização do regime privado é um fator de adequação entre as ofertas de produção e de distribuição do produto. O reconhecimento da lógica de mercado pelo Direito possibilitará a melhor repartição dos benefícios decorrentes da técnica digital entre as empresas, a sociedade, os consumidores, os cidadãos etc. Assim, sustento que seja atribuída a competência regulatória sobre os serviços de televisão por radiodifusão a uma agência reguladora, no caso, a Anatel, com a função de assegurar o equilíbrio interno no mercado nacional, diante dos desafios da globalização, e o equilíbrio externo em face dos demais sistemas de radiodifusão (público e estatal).

Atualmente, já prevalece a lógica de mercado no sistema de radiodifusão privado, porém a doutrina e a jurisprudência tratam, ainda, como serviço público privativo do Estado.

O que falta apenas é adequação entre o direito e os fatos, pois um conceito só se justifica se ele refletir a realidade dos fatos e do direito. A noção clássica não é coerente com as realidades constitucional, social e tecnológica que apontam para a necessária atualização de seu sentido. O velho conceito deve ser transformado e adaptado conforme as circunstâncias do presente, com vistas à regulação que produzirá efeitos para o futuro.

Enfim, possibilita-se a permanência do serviço público no âmbito das televisões estatais e públicas, contudo, viabiliza-se a sua mudança para o fim de seu afastamento da televisão privada.

É fundamental que o poder público organize de modo adequado o funcionamento do serviço público de televisão, porém afastando o regime de concessão de serviço público das tevês privadas. A televisão por radiodifusão é de todos: da sociedade, do Estado e do mercado. Se a tevê evoluiu por que o Direito não evoluirá?

Ericson Meister Scorsim é advogado. Doutor em Direito pela USP. Autor do livro Televisão Digital e Comunicação Social: aspectos regulatórios. Editora Fórum. www.tvdigital.adv.br

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