De olhos fechados ao passado

Na mesma data (18 de setembro) O Estado de S. Paulo publicou matérias referindo-se à decisão do STF ao considerar crime de racismo a propagação de idéias discriminatórias contra judeus veiculadas em livros editados pelo gaúcho Siegfried Elwanger, e o pedido de desculpas do primeiro-ministro italiano Silvio Berlusconi à comunidade israelita, por ter dito em entrevista que o ditador Benito Mussolini “nunca matou ninguém; ao contrário, enviava as pessoas para gozar férias em exílio interno”.

A gafe foi cometida por Berlusconi num encontro com o jornalista inglês Boris Johnson, editor da revista The Spectator, e a conversa teve testemunhas. O primeiro-ministro chegou a afirmar que em comparação ao regime imposto por Saddam Hussein sobre o Iraque, “o de Mussolini era muito mais benigno”. Seu pedido de desculpas foi apresentado a Riccardo Di Segni, rabino de Roma, e a outros líderes da comunidade na principal sinagoga da cidade eterna. Apesar da dor causada pelo grosseiro golpe em feridas ainda abertas, o perdão foi humildemente concedido.

Elwanger, há mais de dez anos publicou livros de conteúdo anti-semita, cuja idéia principal é a assertiva de que os campos de concentração não existiram e, que todas as atrocidades cometidas pelo nazi-fascismo contra os judeus foram forjadas por uma hipotética máquina de propaganda sionista. Os ministros do STF, por 8 votos a 3, concluíram que a sanha do editor em tentar apagar a história recente, não é simplesmente delírio, é muito pior, é crime de racismo.

No caso de Berlusconi o erro é imperdoável, mesmo diante da posição assumida pelos líderes religiosos da comunidade judaica, que de bom grado aceitaram as explicações do primeiro-ministro. O dominador da mídia italiana, senhor todo-poderoso da maior rede de telecomunicações da chamada Bota (RAI), deveria também clamar o perdão dos historiadores que descreveram aquele período infame e, dos vários escritores da própria Itália que, igualmente, abordaram o tema.

Um dos mais conhecidos é Giorgio Bassani, autor do romance O jardim dos Finzi-Contini (Rio Gráfica,1987), que o grande Vittorio de Sicca transformou em magnífico filme (1971) estrelado por Dominique Sanda e Helmut Berger. É escusado lembrar que o enredo do romance (e do filme) é a perseguição aos judeus durante a Segunda Guerra Mundial.

É impossível que Berlusconi não tivesse lido o livro, e mais estapafúrdio ainda, supor que não tivesse assistido o filme. Uma passagem impressiva do romance, que dificilmente alguém poderia esquecer, é a descrição que o narrador faz da páscoa judaica em sua casa: “Olhava à minha volta, um por um, os tios e primos, grande parte dos quais dali a pouco tempo seria engolida pelos fornos crematórios alemães, e certamente não imaginavam que acabariam assim, nem eu mesmo o imaginava”.

Outro autor italiano que seria sacrilégio desconhecer é Primo Levi, nascido numa família judia e vítima do barbarismo nazista, sobrevivente da solução final em Auschwitz. Dentre os livros de maior impacto escritos por Levi sobre o sofrimento que o nazismo lançou sobre os judeus, já publicados no Brasil, o destaque obrigatório vai para É isso um homem?, Os afogados e os sobreviventes, A trégua, Se não agora, quando?

A declaração de Berlusconi teria sido menos dolorosa e comprometida se ele lamentasse a lentidão com que governantes e imprensa da Inglaterra, dos países neutros e dos Estados Unidos, principalmente, reconheceram a gravidade das primeiras informações sobre as atrocidades que o Reich cometia contra os judeus. Só no final de 1942 as matanças na Polônia passaram a ter espaço na imprensa mundial. Os primeiros dados referiam-se a enormes estruturas de concreto levantadas perto da fronteira russo-polonesa, em Sobibor, onde vítimas eram mortas por gás venenoso e incineradas.

O historiador Walter Laqueur publicou em 1980, em Londres, a primeira edição de O terrível segredo, que já no ano seguinte aparecia em português pela Zahar sem indicação do tradutor. A pesquisa feita por Laqueur com base em arquivos governamentais, Cruz Vermelha Internacional e fontes pessoais comprovou que as primeiras informações sobre a dizimação de judeus, na Alemanha e nos países ocupados, não foram levadas na devida conta. Eram fatos demasiado terríveis para serem aceitos como verdadeiros, o que induzia muitos a classificá-los como boatos histéricos comuns em épocas de guerra.

Até outubro de 1942 cerca de dois milhões de judeus já haviam sido mortos, mas diplomatas norte-americanos servindo na Europa relutavam em acreditar em fontes polonesas e judaicas. Afinal, a informação foi confirmada por Carl Burckhardt, membro do comitê executivo da Cruz Vermelha, em Genebra. Laqueur, entretanto, alega que “a informação continuou sendo considerada inconveniente em Washington, mas não podia mais ser ignorada”.

Na verdade, a primeira notícia sobre a decisão que Hitler tomara de eliminar todos os judeus da Europa fora transmitida a Gerhardt Riegner, advogado berlinense de 30 anos e representante do Congresso Judaico Mundial, segundo Lacqueur “por um industrial alemão em julho de 1942”. Imediatamente, Riegner telegrafou a Londres e Washington e seu despacho causou a seguinte reação: “A 10 de agosto de 1942 o Foreign Office recebeu o telegrama; quatro dias depois, Frank Roberts, do Departamento Central, escreveu que a mensagem não podia ser retida por mais tempo, embora temesse que pudesse ter conseqüências embaraçosas: ?Naturalmente, não temos informação relacionada com essa história?. Isso era certo, sem dúvida, no sentido de que não havia informação de uma decisão tomada por Hitler. Mas Roberts soubera através de um colega, muitos meses antes, sobre o desaparecimento de um milhão e meio de judeus; havia outras histórias semelhantes, procedentes de fontes polonesas. Mas ainda assim, parecia-lhe uma história infundada??.

O Departamento de Estado pediu aos diplomatas norte-americanos no exterior que verificassem qualquer informação que ajudasse a esclarecer o relatório Riegner. A indiferença parece ter sido a tônica do tratamento dado a essa questão, ao que Lacqueur pondera: “Todos tiveram um período de dúvidas em relação às terríveis notícias da Europa oriental. Algumas pessoas resolveram agir, quando já não havia dúvidas razoáveis de que a informação era correta. Outras, preferiram prolongar o período de penumbra, e outras ainda, que sabiam, guardaram para si esse conhecimento”.

Depois de julho de 1942, com as deportações de Varsóvia, é cada vez mais difícil compreender a falta de clareza de muitos sobre os reais objetivos do nazismo em relação aos judeus poloneses. Lacqueur assinala que a nitidez da realidade ainda se apresentava encoberta pelo véu da boataria. Ele escreveu que “qualquer análise racional da situação teria mostrado que o objetivo nazista era a destruição de todos os judeus. Mas as pressões psicológicas militavam contra a análise racional e criavam uma atmosfera na qual a racionalização daquilo que se deseja parecia oferecer o único antídoto ao desespero total”.

Se Hitler mesmo tivesse idealizado o extermínio com base numa lógica tão perfeita que retardou de modo fatídico sua percepção pelo Ocidente, o alardeado gênio a ele creditado é muitas vezes superior. O autor de O terrível segredo revela que sequer existe ordem escrita, argumentando que dificilmente Hitler o teria feito porque não tinha hábitos de burocrata. “Quanto mais abominável o crime, menos provável a existência de uma ordem do führer escrita. Se Himmler, Heydrich ou mesmo Eichmann diziam haver tal ordem, ninguém questionaria ou pediria para vê-la”.

De certo modo, a evolução dos fatos que culminaram no Holocausto, fornecem alguma justificativa à constatação tardia de Silvio Berlusconi, mesmo que suas palavras açoitem a consciência libertária. Walter Lacqueur nos oferece um ponto de apoio para avaliar quão mórbido pode ser o pensamento humano: “O fato de que milhões foram mortos era mais ou menos insignificante. Podemos identificar-nos talvez com a sorte de uma única pessoa ou de uma família, mas não com a sorte de milhões. (…) É uma síndrome observada pelos profetas bíblicos e pelos modernos líderes políticos, o fato de ser natural ao homem alimentar ilusões de esperanças e fechar os olhos a uma verdade dolorosa”.

Ivan Schmidt

é jornalista e escritor.

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