Não resta dúvida que a meditação sobre conflitos de interesse é tarefa diária dos operadores do direito. A Lei Federal n.º 11.977, de 7 de julho de 2009, que dispõe, fundamentalmente, sobre o Programa Minha Casa, Minha Vida (“PMCMV”) e a regularização fundiária de assentamentos localizados em áreas urbanas, tornou-se, ultimamente, exemplo desta rotina.

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As diversas interfaces alcançadas pela lei resultam em debates que envolvem desde as questões econômicas e jurídicas, freqüentemente abordadas, até discussões filosóficas e sociológicas, em virtude de algumas peculiaridades introduzidas no texto legal (por exemplo, estabelece que “os contratos e registros efetivados no âmbito do PMCMV serão formalizados, preferencialmente, em nome da mulher”).

A razão para esse turbilhão de questionamentos decorre do principal e importantíssimo objetivo da lei em comento: assegurar o direito à moradia. Inquestionável a relevância deste direito, na medida em que o ser humano tem o abrigo como uma de suas necessidades essenciais. Tanto é assim que a moradia é caracterizada como um direito social pelo artigo 6.º da Constituição Federal.

Nesse contexto, o Estado tem a incumbência de auxiliar na promoção do acesso à moradia, contudo, tal papel deve ser exercido com cautela, desde a confecção de normas que tenham aludida finalidade até a sua aplicação no dia-dia, mesmo porque, como já bem alertava o historiador romano Tito Lívio, “não há lei que a todos possa contentar”.

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Portanto, para evitar litígios, que podem ser aflorados em virtude da implantação de programas de incentivo à moradia, o Estado deve ficar atento para não macular direitos individuais e, principalmente, direitos coletivos, como o direito urbanístico e o ambiental.

Especificamente na lei em questão, há uma modalidade de fomento à moradia, chamada regularização fundiária de assentamentos urbanos, que, dada sua natureza de retirar o assentamento da irregularidade, ensejou o referido sentimento de cautela no legislador, o qual visa, claramente, tentar resguardar o direito ambiental e o urbanístico durante os procedimentos de regularização, afinal, esta pode objetivar, por exemplo, áreas que, a princípio, não deveriam ser destinadas à moradia, mas à preservação ambiental.

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Nesse sentido, adotou-se em alguns artigos da lei (por exemplo, artigos 3.º, 46, 54, 61 e 62) uma redação profilática que ressalva a necessidade de observância das questões ambientais e urbanísticas na regularização.

Todavia, ao mesmo tempo, a lei prevê exceções, como a possibilidade (observados determinados requisitos) de regularização fundiária em áreas de preservação permanente (“APP”).

Assim, resta-nos a reflexão sobre qual será a rigidez e a prudência adotada, pelos órgãos Municipais que serão responsáveis pela aprovação dos respectivos projetos, para concedê-las.

Ou seja, a preocupação que paira é compreender com qual tipo de discricionariedade os projetos que contemplem, por exemplo, ocupações irregulares em encostas, manguezais e áreas de mananciais serão aprovados?

Infelizmente, não se duvida que ambições “político-eleitoreiras” influenciarão nos procedimentos de regularização. Afinal, essa propicia uma otimização de custos para a Administração Pública, que abandona a velha política paternalista de construção de moradias populares, geradora de enormes gastos, e mantém o interesse do eleitor, concedendo-lhe, simplesmente, legitimação de posse que, após cinco (05) anos de seu registro, poderá ser convertida em título de propriedade (a chamada usucapião administrativa).

Destarte, essa saída de política urbana, além de ser economicamente viável à Administração, atende ao interesse individual daquele que está irregular, pois este se torna, efetivamente, titular da moradia. Entretanto, se mal utilizada, poderá afetar o interesse público ambiental e urbanístico, trazendo inestimáveis prejuízos à sociedade.

A aplicação da regularização fundiária em áreas urbanas dependerá, portanto, do bom-senso da Administração Pública, a qual restará o árduo trabalho de buscar saídas que equilibrem os interesses.

José Guilherme Gregori Siqueira Dias é advogado especialista em direito imobiliário.