Davos gaúcho

Um jeito todo especial de dizer as coisas está fazendo do presidente Luiz Inácio Lula da Silva uma espécie de guru das esquerdas. Dessa forma ele foi aclamado já pelos militantes da esquerda latino-americana, reunidos em congresso logo após a eleição. Agora, o próprio Lula não esconde gostar da idéia de posar para referências mais amplas, para não dizer globais – uma palavra que a esquerda detesta sem muitas explicações. O discurso que pronunciou em Porto Alegre, no Fórum Social Mundial, que traz para o Brasil preocupações até aqui não imaginadas, e em Davos, no Fórum Econômico Mundial, não deixam dúvidas disso.

Excluindo-se esse fato (é preciso dar tempo ao tempo, já que ninguém é líder apenas porque quer), em ambos os fóruns, Lula disse algumas coisas importantes, além da inútil ironia sobre os que têm olhos azuis ou conseguem comer cinco vezes ao dia. Mas a mais importante de todas foi, sem dúvida, seu apelo à paz. “O mundo – enfatizou – não está precisando de guerra; o mundo está precisando de paz”, numa referência indireta às manobras dos Estados Unidos em preparação para outra guerra no Golfo Pérsico. Tanto em Porto Alegre quanto em Davos, Lula imaginou todo o dinheiro que atualmente é gasto na produção de armamentos e outras iniciativas bélicas canalizado para a distribuição de alimentos. E concitou a humanidade inteira a trabalhar para mudar o planeta Terra, começando por uma nova ordem econômica mundial.

O discurso é genérico, é bem verdade. Ninguém perguntou a Lula nem ele explicou em detalhes qual seria essa nova ordem econômica, além do repetido lamentar-se contra as diferenças abissais entre ricos e pobres. Mas, talvez por carência de uma idéia-força que se contrabalançasse àquela fixa da guerra iminente, a repercussão que obteve no exterior foi instantânea. Os jornais europeus destacaram um Lula “lá e cá”, isto é, participando dos dois fóruns – já que foi o único chefe de Estado a fazer isso.

Um líder com pé nos dois mundos, pois, é a imagem em processo de moldagem do Lula que até aqui tem sido áspero com relação à reunião dos grandes, sempre cercados por grossos fios de arame farpado e outros cuidados excepcionais. Essa imagem ele a quer, em contraposição àquela de Bush: o combate à fome precisa ter a mesma importância que o combate ao terrorismo. Em outras palavras, nenhum rico do planeta será inteiramente feliz enquanto existirem pobres ao seu redor.

O discurso – isso Lula deixou bem claro – vale também aqui. No Brasil e na América Latina. Aqui, principalmente, onde pululam exemplos de malversação de recursos e onde será feita a reforma agrária, segundo reafirmou em Porto Alegre, como se ainda estivesse em campanha. O presidente foi enfático ao dizer que não se fez eleger para relegar ao esquecimento tudo aquilo pelo que lutou em sua vida e tudo aquilo que prometeu em campanha. Mesmo assim, tinha alguém no Fórum Social fazendo contra o presidente Lula o papel que o candidato Lula fazia contra Davos: João Pedro Stédile, o principal dirigente do Movimento dos Sem-Terra (MST) fez declaração de guerra ao anunciar que continuará a arregimentação de pobres em todo o País para a ocupação de propriedades alheias. A paz, pregada por Lula, assim, fica difícil.

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