(Para considerar a inclusão da estatística não paramétrica na avaliação do dano moral em face do Projeto de Lei 523/11)
SUMÁRIO
1 Introdução
2 Quantidades e qualidades na avaliação do dano moral
3 A insuficiência de ambas as pautas
4 O papel da estatística não paramétrica
5 À maneira de conclusão
6 Referências
1 Introdução
Tramita na Câmara dos Deputados o Projeto de Lei número 523/11, proposto pelo Parlamentar Dep. Walter Tosta (PMN-MG), que define o dano moral e estabelece a indenização a ser aplicada a quem comete esse delito: “dano moral é todo aquele em que haja irreparável mácula à honra subjetiva da pessoa natural ou jurídica”.
A reparação será fixada entre 10 (dez) a 500 (quinhentos) salários- mínimos (R$ 5.540,00 a R$ 272.500,00) e levará em conta o potencial econômico da vítima e do autor. O referido texto elenca ainda 24 (vinte e quatro) condutas lesivas à moral.
Todavia, após tantos anos de debates, o que se vê, no Projeto de Lei em apreço, parece ser a mera quantificação do dano moral.
No presente artigo[1] apresentamos, como sugestão, a estatística não paramétrica, que é um modelo científico atual, hábil a conciliar dados quantitativos e qualitativos, com vistas a um resultado unitário.
Acreditamos que a estatística não paramétrica possa ser útil à evolução científica e jurídica da avaliação dos danos morais, no Brasil.
2 Quantidades e qualidades na avaliação do dano moral
A questão da avaliação do dano moral, historicamente, iniciou-se por meio da quantificação, em França; e evoluiu para a qualificação, principalmente na Argentina. Desde a promulgação da Constituição da República, em 1998, o Brasil aderiu às pautas qualitativas, sobre as quais se pode considerar o que segue:
Jorge Mosset ITURRASPE personaliza um entendimento ímpar sobre o dano moral, por conseguir enxergar seus liames, suas implicações e suas relações de uma ótica própria, caracterizada por peculiares humanismo e sociologismo. A esse modo de pensar, que é indissociável dos valores da cultura e das questões sociológicas, tem-se chamado de qualitativo. Na opinião de Matilde Zavala de GONZALEZ[2], as idéias postas por Mosset ITURRASPE[3] revestem-se de importância gnoseológica, como se vê:
“El reconocimiento del daño moral y de su reparación tiene que ver con a conciencia media de un pueblo (…) el daño moral se infiere o deduce de situaciones determinadas que, para el hombre medio – en una comunidad y sem un tiempo – son productoras o causantes de sufrimiento. (Pero la) intensidad del justo dolor del hombre medio no deben conducir a dejar de lado la indagación acerca de la repercusión subjetiva en cada persona.”
ITURRASPE[4] formulou 10 regras para quantificar o dano moral. São elas:
1) O dano é incomensurável: A dor, as disfunções nos estados de ânimo, os ataques à personalidade e à vida de relação, as frustrações nos projetos de vida, assim como os danos estéticos, à harmonia do corpo, à intimidade, não podem ser traduzidos em dinheiro. Deve-se compreender, portanto, a impossibilidade de fórmulas matemáticas, da pretensão de estabelecer um número. É preciso compreender que é assim e que assim deve ser, para alcançarmos e sabermos manejar o que CARBONNIER chamou de “Direito Flexível”, esclarece ITURRASPE[5].
2) Um piso flexível: Não devemos incorrer no ceticismo, já que é impossível a homogeneidade entre o valor que se quer reparar e o valor em dinheiro. É preciso, portanto, estabelecer pisos flexíveis, sem cair na idéia da reparação simbólica, porque nossos povos não estão preparados e amadurecidos para tanto, em sua sensibilidade. É um problema de sociologia jurídica; cada juiz saberá qual é esse piso flexível.
3) Um teto prudente: Que a indenização não seja tão elevada, a ponto de ser extravagante e levar a uma situação de enriquecimento injusto, que nunca se gozou; nem tão baixa, por ser irrisória. Que haja piso, que haja teto, que haja razoabilidade.
4) Dentro do contexto econômico do país: A indenização deve ter em conta a conjuntura econômica nacional, a situação média da população, porque o Poder Judiciário não pode funcionar de modo alheio a essa realidade.
5) Uma prova convincente, firme e clara: Os juizes não estão para sentenciar conforme doutrinas cabíveis a quaisquer hipóteses; mas sim para aplicar as doutrinas que servem aos casos, para cada um, unicamente. Para que um juiz outorgue uma indenização a título de dano moral, é preciso estar convencido de que esse dano moral tenha existido. Esta parece, para ITURRASPE[6], uma regra de ouro, pela sua importância e comum aceitação.
6) Capacidade morigeradora do juiz: ao juiz cabe balancear as cifras, fixando-as de modo que tenham razoabilidade. É preciso socializar o dano e socializar a reparação, estendendo-os de modo que atendam às expectativas da coletividade; e não burocratizá-los. Essa consciência deve presidir o uso de tábuas de cotização.
7) Critérios de equidade e as circunstâncias particulares: Esta regra há que ser considerada, ainda que possa parecer “na contramão” do “avanço” da standartização. Não se pode fazer justiça que não contenha a base da eqüidade, atendendo às circunstâncias particulares de cada caso.
8) Necessidade de consenso: Sem prejuízo da distinção entre os múltiplos danos, que recebem a denominação de danos morais, é necessário que entre os juizes, através de suas corporações, logre-se obter, em cada nação, uma communio opinio, ou um “ponto de cristalização”, conforme chamam alguns.
9) Segurança e predecibilidade das decisões: integra o conceito de cidadania a prática de segurança com justiça e a prestação da justiça segura. Do mesmo modo, destaca-se na escola axiológica de nossas sociedades a predecibilidade, que consiste, percentualmente, em uma margem de probabilidades de antecipação das decisões jurídicas.
10) Coerência das decisões – Opiniões: Independentemente das inspirações pessoais, os magistrados, reunidos em congressos científicos, fazem critérios, formam opiniões que vão se unificando, harmonizando-se e, por fim, cristalizam-se até que se atinja o ponto de ter “dolores iguales, reparaciones iguales, de lo contrario no hay justicia”[7].
Para finalizar, diz ITURRASPE[8]:
“Que bueno sería que con imaginación, con fe, con confianza, sin vagos ni absurdos esceptismos, emprendiéramos estos caminos para un derecho mejor (…). Si el sendero está más firme, si las luces lo iluminan, lo empezaremos a transitar con más fe y optimismo”.
3 A insuficiência de ambas as pautas
Matilde Zavala de GONZALES[9] significa uma síntese, em vários aspectos, da discussão acerca do dano moral, quando resume em sua obra, as etapas já cumpridas e a que falta alcançar.
As etapas cumpridas são a que deve haver uma reparação e o modo há de ser mediante uma indenização pecuniária. O quanto é um aspecto deixado até o momento à prudente valoração jurisdicional, com o auxílio de algumas guias qualitativas.
Para essa autora, não se pode nem se deve pretender uma concepção matemática totalizadora da questão, o que, além de ser impossível, encarceraria a justiça de modo cego e inamovível. Porém, a fluidez e o arbítrio irestritivos, que podem significar a liberdade para fazer justiça, podem igualmente conduzir ao naufrágio.
Uma das mais fortes tônicas do pensamento de GONZALES[10] é apontar, de maneira equidistante, a insuficiência das pautas qualitativas objetivas (que adotam, via de regra, critérios que justapõem circunstâncias da causa, como a gravidade e a extensão do dano, a condição patrimonial das partes, a importância do bem lesionado, a existência ou magnitude do dano patrimonial, etc); assim como a insuficiência das pautas qualitativas subjetivas (caracterizadas pelos valores de um determinado tempo ou espaço geográfico, sexo e idade da vítima, sua personalidade e toda sorte de considerações casuísticas, sua atividade profissional e possíveis frustrações, etc).
Para concluir, fala-nos que a solução do impasse pode se dar pela regulação quantitativa, que não é apenas necessária, mas possível.
Adverte-nos, entretanto, que a regulação quantitativa não é sinônimo de indenização tarifária, conforme explica:
“El dolor material no se tarifa ni se paga (…). Pues bien, ciertamente el daño moral no es ‘tarifable'(…), pero sí es ‘regulable’ el quantum resarcitório, a fin de encarilar (sin coartar ni aminorar) la justa reparación del prejuicio. No se trata (…) de automatizar y mecanizar la indemnización, desentendiéndose de la prueba del daño moral de su gravedad y de la averiguación en el caso particular de la correlativa entidad adecuada de la idemnización. Lo que se procura es alcanzar un objetivo justo dentro de una seguridad mínima. Por tal razón, la regulación normativa de la indemnización del daño moral no debe ser rígida, ceñida o restrictiva, sino condutora y flexible; no imperativa sino indicativa.”
A sugestão sobre a regulamentação quantitativa dos danos morais, apresentada por Matilde Zavala de GONZALEZ[11] atém-se a descrever o modo como deve ser feita essa regulação, mas não indica, ainda, a construção concreta desse parâmetro, cuja principal característica é, em suma, uma grande elasticidade, de modo a permitir largas amplitudes e escalas para a valoração judicial.
Todavia, ao que nos parece, as pautas qualitativas não estão sendo devidamente consideradas para a avaliação do dano moral no Brasil, em especial pelo que se vê contemplado no Projeto de Lei 523/11, o que bem poderia ser feito através do emprego de modelos científicos atuais, como por exemplo, a estatística não paramétrica, conforme veremos a seguir.
4 O papel da estatística não paramétrica[12]
Pode-se destacar, por exemplo, dois tipos de técnicas estatísticas não paramétricas, segundo Maria Coleta OLIVEIRA:”O primeiro envolve um conjunto de procedimentos de análise de tabelas de contingência, que inclui o Teste Exato do Qui-Quadrado com ajuste de Monte Carlo, a Análise de Resíduos Ajustados e a Análise de Correspondência. A aplicação deste conjunto de técnicas segue os passos de Leal e Fachel e objetiva realizar aproximações sucessivas dos dados, com vistas à detecção de relações entre algumas variáveis selecionadas e construídas”.[13] O segundo tipo de técnica, ainda para a referida autora, é “o Método do Grau de Inclusão conhecido como GoM4. Este método destina-se à análise de dados categóricos extraídos de amostras pequenas com um grande número de variáveis, permitindo determinar dois ou mais perfis extremos e os graus de pertinência de cada um dos indivíduos a estes perfis”[14]. Ora, pelo que se deflui, não foram divulgadas, no Brasil, estatísticas sobre dados qualitativos referentes ao pleito, tampouco à indenizações do dano moral. Assim, o Projeto de Lei em questão não as contempla, na proposta apresentada.
Mas o que é e em que consiste a análise não paramétrica dos dados qualitativos? Em primeiro lugar, tem-se que considerar que tal tipo de análise leva em conta a ordem, a estrutura e o significado dos dados qualitativos; e consiste na transformação dos dados coletados em conclusões e/ou lições úteis e credíveis. A partir dos tópicos estabelecidos processam-se os dados, procurando-se tendências e diferenças na informação obtida.[15] Qual
Qual Qual é a vantagem de se realizar esse tipo de estatística na área jurídica, particularmente em relação ao dano moral? Primeiro, o dano moral é questão que lida com valor, portanto, é qualidade e tange a esfera axiológica, o que significa que não pode ser mensurada apenas quantitativamente.
Segundo, teçamos algumas outras considerações sobre a pesquisa qualitativa em Direito. A pesquisa qualitativa é importante porque o Direito trabalha com valores e qualidade é valor; é aquilo que não pode ser medido em números ou cifras.
Exemplos de pesquisas quantitativas em Direito são as estatísticas e os questionários. Já as entrevistas, bem como outras temáticas subjetivas, são exemplos de pesquisas qualitativas, pois se referem a valores ou a objetos que não se traduzem em números ou gráficos.
Pesquisadores qualitativos procuram respostas no mundo real, a partir do que vêem, ouvem e lêem de pessoas provenientes de diferentes lugares e atividades. Sua proposta é aprender sobre aspectos do mundo social e gerar novos conhecimentos que possam ser aplicados a esse mesmo mundo.
A pesquisa qualitativa tem como características perguntar por quê, como e em que circunstâncias os fenômenos ocorrem; procurar aprofundar o entendimento; explorar e descobrir novas visões do fenômeno; buscar uma visão holística dos acontecimentos; providenciar novos aportes para a tomada de decisões; utilizar métodos interpretativos abertos; ser mais interativa e menos fixa; ser mais emergente do que pré-estruturada; envolver participantes ativos, preferencialmente a dados pré-obtidos; e definir a investigação como um processo em curso e não como um mero instrumento fechado.
A pesquisa qualitativa em Direito pode revelar novas facetas dos fenômenos sociais, contribuindo assim para uma compreensão mais humanística da realidade social e jurídica.[16]
5 À maneira de conclusão
A grosso modo, pode-se afirmar que a estatística não paramétrica é um método capaz de agregar, em um único resultado, dados quantitativos e qualitativos. Em outras palavras, é um modo estatístico de tabular dados qualitativos, conferindo-lhes homogeneidade e correspondência, em relação aos dados quantitativos. Por essas razões, com o auxílio da estatística não paramétrica, é possível conciliar quantidades e qualidades em um resultado unitário, o que poderia ser de interesse para a avaliação do dano moral no Brasil.
Desse modo, possivelmente nos aproximaríamos mais da afirmação do insigne jurista brasileiro e Professor Doutor Clayton REIS[17] de que, no caso do dano moral, “há um patrimônio desmaterializado” a ser devidamente indenizado. Nesse sentido, corrobora o argentino Professor Doutor Alberto J. BUERES[18], como um dos maiores nome em “derecho de danos”, ao caracterizar-lhe o espírito falando-nos da rápida e eficaz evolução da reparação civil no mundo, acentuadamente nas duas últimas décadas.
6 Referências
Análise de dados estatísticos (Measure Evaluation). http://www.cpc.unc.edu/measure . Acesso em 09/12/2011.
CARNEIRO, Maria Francisca. Avaliação do dano moral e discurso jurídico. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris Editor, 1998.
CARNEIRO, Maria Francisca. Método de valuación del dano moral – De los lenguages al derecho. Buenos Aires: Hammurabi, 2001.
CARNEIRO, Maria Francisca. Pesquisa jurídica – Metodologia da aprendizagem. 7ª. ed., (Prefácio e anexo 8), Curitiba: Juruá, 2011.
GONZALES, Matilde Zavala de. Resarcimiento de daños. (Daños a las personas – Integridad sicofísica), Vol. 2.a, 2. ed., 1. reimpressão, Buenos Aires: Hammurabi, 1991.
ITURRASPE, Jorge Mosset. Responsabilidad por daños. T. IV, Buenos Aires: Ediar, 1985.
ITURRASPE, Jorge Mosset. Daño moral (cuantia del resarcimento por daño moral), [s.l.], p. 31 e segs.
OLIVEIRA, Maria Coleta. Homens e contracepção: análise estatística dados qualitativos. XIII Encontro Nacional e Estudos Populacionais, GT Gênero e População, Ouro Preto, MG, 4-8 de novembro de 2002.
REIS, Clayton. Dano moral. 4ª. ed., Rio de Janeiro: Forense, 1997.
[1] O presente artigo, embora contenha inovações, é escrito com base em nossos livros: CARNEIRO, Maria Francisca. Avaliação do dano moral e discurso jurídico. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris Editor, 1998; e CARNEIRO, Maria Francisca. Método de valuación del dano moral – De los lenguages al derecho. Buenos Aires: Hammurabi, 2001.
[2] GONZALES, Matilde Zavala de. op cit.
[3] ITURRASPE, Jorge Mosset. Responsabilidad por daños. T. IV, Buenos Aires: Ediar, 1985, p. 196.
[4] ITURRASPE, Jorge Mosset. Daño moral (cuantia del resarcimento por daño moral), [s.l.], p. 31 e segs.
[5] Idem, ibidem.
[6] Idem, ibidem.
[7] ITURRASPE, Jorge Mosset, op cit, p. 47.
[8] Idem, ibidem, p. 48.
[9] GONZALES, Matilde Zavala de. Resarcimiento de daños. (Daños a las personas – Integridad sicofísica), Vol. 2.a, 2. ed., 1. reimpressão, Buenos Aires: Hammurabi, 1991, p. 505.
[10] Idem, ibidem, p. 513 e segs.
[11] Idem, ibidem.
[12] Agradecimentos ao Engenheiro, Estatístico e Conferencista Ronaldo Lobo Gonçalves, pelos ensinamentos, explicações e pelo material disponibilizado para consulta.
[13]OLIVEIRA, Maria Coleta. Homens e contracepção: análise estatística dados qualitativos. XIII Encontro Nacional e Estudos Populacionais, GT Gênero e População, Ouro Preto, MG, 4-8 de novembro de 2002.
[14] Idem, ibidem.
[15] Análise de dados estatísticos (Measure Evaluation). http://www.cpc.unc.edu/measure . Acesso em 09/12/2011.
[16] CARNEIRO, Maria Francisca. Pesquisa jurídica – Metodologia da aprendizagem. 7ª. ed., (Prefácio e anexo 8), Curitiba: Juruá, 2011.
[17] REIS, Clayton. Dano moral. 4ª ed., Rio de Janeiro: Forense, 1997, p.6.
[18] BUERES, Alberto J. Responsabilidad civil del escribano. Buenos Aires: Hammurabi, 1979.
Maria Francisca Carneiro é Doutora em Direito pela UFPR, Pós-doutora em Filosofia pela Universidade de Lisboa, Membro do Centro de Letras do Paraná, da Italian Society for Law and Literature, Editorial Board Member of the International Journal for Law, Language & Discourse, e do Scientific & Academic Publishing.