Da venda de ingressos por cambistas

Não raras vezes, a imprensa noticia a presença de cambistas efetuando a venda de ingressos para shows, jogos de futebol e congêneres.

O reclamo do público consumidor não foge da contumaz atitude dos cambistas, haja vista o preço diferenciado que cobram para os ingressos sempre, como sói acontecer, bem acima daquele praticado na bilheteria.

O tema, a meu ver, envolve duas questões. A primeira é a venda de ingressos por cambistas, quando ainda há disponibilidade na bilheteria, cujo argumento do cambista para convencer o consumidor é o desconforto de permanecer na fila. A segunda aponta para a inexistência de ingressos, por ter sido totalizada a venda, onde os existentes estão em mãos de cambistas.

A quizila se comporta da maneira seguinte: na primeira questão não vejo nenhuma lesão de consumo, tendo em vista o direito de escolha do consumidor restar intacto, id est, poderá permanecer na fila e adquirir o ingresso pelo preço real, ou então, por questões de comodidade, comprá-lo por um preço maior do cambista. A segunda questão é que infringe as normas consumeristas.

O cambista, como é notório, adquire inúmeros ingressos para revenda, tão logo a venda seja finalizada na bilheteria.

De posse de vários ingressos o cambista impõe o preço que melhor lhe convém.
O consumidor interessado em não perder o evento, queda-se e paga o valor exigido pelo cambista.

A partir daí, como o preço do indigitado ingresso sempre será superfaturado, evidente a infração ao disposto no artigo 51, inciso IV, 2.ª parte, do Código de Consumo, já que aquele consumidor, e potencialmente todo público consumidor, está sendo colocado em desvantagem financeira exagerada, o que é evidente.
Configurando-se violação do citado artigo advirá, em consectário, o delito previsto no artigo 7.º, inciso I, da Lei n.º 8137/90, justamente no aspecto do cambista estar favorecendo e/ou preferindo comprador e/ou freguês que se dispuser a pagar aquele preço, alto diga-se de passagem.

É claro, como a luz solar, que o cambista estará ao largo de socorrer-se em possível justa causa para justificar o preço que exige pelo ingresso, até porque, nessa segunda hipótese, não há razão justa que lhe aproveite.

Para melhor entender este tema, no caso a segunda questão, alicercei-me na doutrina e constatei que Antonio César Lima da Fonseca, na obra Direito Penal do Consumidor, Editora Livraria do Advogado, páginas 251 e 252, ensina que “Favorecer significa beneficiar, conceder vantagens ou regalias a alguém. É o que ocorre quando o fornecedor oferece certas facilidades a um determinado adquirente (consumidor) de seus produtos ou serviços. Preferir é escolher, optar, privilegiar alguém, concedendo-lhe ou não, regalias que não concedeu a terceiro. Dá-se a primazia a um em detrimento do outro. O que deve ficar claro é a “discriminação” que fere sem uma justa causa. Daí a existência da ilicitude especial: a justa causa, isto é, se havia uma ordem de chegada (ordem de preferência) no adquirir o produto/serviço, deve e pode existir a preferência ora vedada. Esta é a justa causa de que fala a lei. O que não se pode é quebrar-se a justa causa, ou afastá-la pela preferência.”

Vai daí que, se esse ou aquele consumidor vergar-se ao preço especulativo do ingresso cobrado pelo cambista estará este preferindo aquele. Escolhendo-o, constatada restará a ausência de justa causa.

Na verdade, o benefício, a concessão de vantagem, regalia e/ou privilégio que o cambista ofertar ao consumidor, esgotar-se-á na entrega do ingresso e recebimento do excessivo valor exigido. Nada mais. Vale dizer, o cambista aproveita-se da fraqueza momentânea do consumidor para lucrar excessivamente, o que culmina por ofender a regra do artigo 39, inciso V do Código de Defesa do Consumidor.

Ainda, como forma de sustentar meu entendimento acerca do tema, há a jurisprudência seguinte: “Cambista” Venda de ingressos acima do preço.
“Viola do artigo 2.º, inciso IX da Lei 1521, de 26 de dezembro de 1951, o “cambista’ que vende ou tenta vender ingressos de partida de futebol por preços superiores aos estipulados pela entidade desportiva.” (TACRIM-SP-Rel. Haroldo Luz RT 647/316).

“Pratica crime contra a economia popular o cambista que vende entradas para determinado espetáculo por preço superior ao real, pouco importando que as vítimas diretas tenham ciência do verdadeiro valor dos ingressos, vez que nos crimes contra a economia popular, a proteção legal não é dada a um ou alguns indivíduos, eventualmente considerados sujeitos passivos, mas a todos os membros de uma coletividade igualmente expostos ao dano ou ao perigo de sofrerem as conseqüências da ação do criminoso.” (TACRIM SP AC Rel. Roberto Mortari RT 726/694).

“Incorre nas mesmas penas do artigo 2.º, inciso IX da Lei 1521 o agente que compra ingressos de espetáculo e os revende por preço superior ao real.” (TACRIM SP 13.ª Câmara REC. 911.579-Rel. Roberto Mortari J. 20/12/1994)
Mais recentemente, a Quarta Vara da Fazenda Pública de Recife(1) entendeu que “Constitui crime contra as relações de consumo o favorecimento ou preferência, sem justa causa, de comprador ou freguês (artigo 7.º, inciso I, da Lei 8137/90), de modo que constitui exigência de vantagem manifestamente excessiva para o consumidor a venda de ingressos para shows, com preço abusivo (artigo 39, inciso V do Código de Defesa do Consumidor).”

Anote-se, também, que o cambista pode estar laborando na ilegalidade, caso não esteja agasalhado por licença municipal que lhe defira a qualidade de trabalhador autônomo, consoante dispõe Códigos de Posturas Municipais.
Ao fim, além da conduta penal a que o cambista está sujeito, parece que é conveniente e seguro que os responsáveis por eventos informatizem e limitem a quantidade de ingressos a serem adquiridos pelo público consumidor para, assim, evitar a ação de cambistas.

Nota:

(1)     Dados do Processo n.º 001.2007. 026058-4 Ação Civil Pública 18/4/2007 Juiz: Djalma Adrelino Nogueira Júnior.

João Henrique Vilela da Silveira é promotor de Justiça do Ministério Público do Paraná.

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