Algumas matérias do Direito têm tamanha complexidade que se tornam de difícil trato, mormente pelo risco que se corre com posições necessariamente assumidas e, com freqüência, manipuladas pelos que escutam, mas não ouvem, ganhando dimensões indesejáveis. Não há que temer, porém, os manipuladores, em geral calcados nas ?suas? verdades e numa visão estreita e linear da vida, quando não agarrada ao passado tranqüilizador: fosse assim sempre o sol ?continuaria a girar em torno da terra? ou se estaria, ainda, comendo com as mãos. Há um preço a pagar pelo risco, todavia, como mostraram Galileu, Giordano Bruno e Campanella, só para ficar, talvez, no melhor exemplo. O tempo passa, o mundo muda, mas o risco segue com sua estatura. É preciso, não obstante, não calar; é preciso resistir; é preciso viver na realidade que se vive e, aqui, aprender com Enrique Dussel e não com Habermas ou Luhmann e outros que, corretamente, pensam olhando para seus umbigos, para sua gente, deixando aos ?locais? a missão de pensar por si seus próprios problemas e, se não se derem conta, copiar soluções equivocadas, muitas vezes salutares para a Europa e o primeiro mundo, mas com certeza, fora dos padrões da miséria da América Latina e, máxime, da terrae brasilis.
Mas, a ele, o risco, vale a pena, ?porque a alma não é pequena?, como ensinou Fernando Pessoa em Mar Portuguez e, se não fosse por ele, Raimundo Faoro não teria subido a rampa do Palácio do Planalto (arriscando o pêlo e o prestígio da e na OAB) para, com inteligência, abrir, definitivamente, as portas para o retorno da esperança democrática. Para tanto, teve que convencer a muitos que valia sentar com o General, com humildade e muita sabedoria para, com os olhos no futuro e recordando do passado, plantar no presente.
A partir de tal premissa é que se deve discutir o presente tema, sem receio, para ver se, pelo diálogo, chega-se ao melhor para todos. Assim, é de conhecimento geral que ultimamente inúmeras demandas são aforadas no Paraná e, de resto, em todos os demais estados, pleiteando medicamentos e produtos, desde fraldas descartáveis até mesmo tratamento em Cuba, nos Estados Unidos da América e até eletrodos, os quais vêm sendo concedidos, indiscriminadamente, pelo Poder Judiciário, em aparente descompasso com os dispositivos constitucionais, infraconstitucionais e regulamentares previstos pela Política Nacional de Medicamentos. A matéria, contudo, não é simples, porque mexe com interesses individuais e, em contraposição, o dever estatal (União, Estados e Municípios) de propiciar saúde a todos, nos termos do artigo 196 da Constituição da República: ?A saúde é direito de todos e dever do Estado, garantido mediante políticas sociais e econômicas que visem à redução do risco de doença e de outros agravos e ao acesso universal e igualitário às ações e serviços para sua promoção, proteção e recuperação.?
A concessão indiscriminada e desenfreada de liminares e sua confirmação em sentenças vem, como não poderia deixar de ser, conduzindo a um colapso do Sistema Público de Saúde, pois, num país como o Brasil, onde os recursos são escassos, as ordens judiciais para fornecimento de medicamentos e produtos de alto custo, sem qualquer comprovação técnica de eficácia, tampouco controle ambulatorial, acabam compelindo a Administração a limitar os recursos que seriam destinados aos programas básicos de saúde da população. Enfim, na falta de recursos orçamentários, acaba-se por tomar de todos para fornecer, por ordem do Poder Judiciário, a alguns.
Ora, era evidente que isso ia acontecer, de um lado porque com a minimização estatal trouxe, como conseqüência, a escassez de recursos, obrigando um redimensionamento das Políticas Públicas, incluso aquela da saúde e de distribuição de medicamentos. Por outro lado, o Poder Judiciário começou, de certo modo indiscriminado, a ditar a Política Pública, como se isso fosse possível diante do princípio Republicano (art. 2.º, da CR) e, assim, desencadeou-se um aparente remédio democrático, mas sem o devido fundamento: a quem pudesse (recte: quem tivesse condições e chegasse antes), concedia-se, por liminares e sentenças, remédios e produtos, um tanto quanto sem critérios, à revelia das regras regulamentares da Política Pública. Isso não parecia nem legal, nem justo, porque era evidente que iria desestabilizar o sistema e gerar injustiça, por mais bem-intencionadas que fossem as decisões. Ora, quem negaria medicamentos a uma pessoa carente padecendo de aids e outras doenças graves? Aos juízes, em tais condições, dizer não seria como que assinar a sentença de morte do requerente; seria como dizer não à vida e, em tais circunstâncias, chamar para si uma responsabilidade que poderia ser descarregada, ou seja, algo compreensível diante dos valores que conduzem a cultura do país. Qualquer um, com um pouco de consciência, faria o mesmo.
O problema central, contudo, não está aqui, como parece elementar, mas no vilipêndio do princípio da igualdade porque, sabe-se bem, os doentes graves e carentes daqueles centros médicos, não têm nenhuma condição de sequer chegar às portas do Poder Judiciário; e os médicos de hospitais públicos, como não poderia deixar de ser, não entendem e nem aceitam o que se está a passar porque, além de risível, a situação é de uma injustiça ímpar.
A questão, portanto, se juridicamente era complexa, do ponto de vista social era simples, pelo menos a quem tivesse um mínimo de sensibilidade; e isto, com as exceções de sempre, têm os nossos juízes que, para decidirem pela concessão, utilizaram os mais variados argumentos, dentre eles o desperdício das verbas públicas pelos governantes com atividades indevidas, como a publicidade (v.g.), em uma mistura equivocada de premissas em razão, como é primário, do cumprimento orçamentário legitimamente aprovado. Como argumentação, porém, uma contra-resposta sempre foi com razão muito difícil; por sinal obra de alguém que quisesse arriscar a própria reputação democrática. O problema, contudo, não é desta ordem e o tempo encarregar-se-ia de mostrar como era preciso racionalizar devidamente a matéria, de modo a obrigar a todos muito mais que um encontro com a realidade, um encontro com o real lacaniano.
Enfim, como era de se esperar, foi-se à porta do colapso e, nele, não ganha ninguém, muito menos a democracia. Os efeitos de algo do gênero seriam desastrosos para os cidadãos e politicamente terríveis para os governantes, mas, muito pior, para o Poder Judiciário que arriscou e se arrisca não ter cumpridas suas ordens, com um desgaste sem precedentes ao ?lugar de referência? que ocupa no ?registro simbólico? da sociedade, se fosse possível assim falar.
O risco, como se pode pressentir, é se chegar ao estado de natureza hobbesiano: quem tem poder, manda, mas essa coisa decorrente da capacidade de impor a própria vontade aos outros inclusive contra a vontade desses (Weber) pode se desfazer na ponta das baionetas ou não passar pelos tanques, dependendo do tirano de plantão, quiçá um pseudo líder carismático, ou seja, um ilusionista que empunha uma bandeira qualquer para enganar os ingênuos, escolhe os inimigos e, em seguida, perde-se nos porões da barbárie, tentando imitar um César romano ou mesmo enfrentar, em uma democracia alquebrada terceiro-mundista, a falta de recursos, mormente quando a opção econômica é pela visão caolha do neoliberalismo, como sucedido no Brasil que, como se sabe, segue comendo pelas mãos do Consenso de Washington; e uma elite que, por conta da competição, só quer ganhar, só quer ter lucro, a qualquer custo, mesmo correndo os riscos da falta devida de distribuição de renda. Enfim, um ?mundo? de ?espertos? que se não importa de consumir a ética, não raro iludido pela equivocada visão de que pelo medo se ?segura?, para sempre, os sujeitos, sem a mínima preocupação de olhar para os ensinamentos da história e, porque muito próximo, a queda do muro de Berlim.
Numa democracia todos são responsáveis pelo futuro democrático e ele só se dá com efetiva harmonia entre os Poderes. Claro, não se pode mais pensar como Montesquieu, mas quando um Poder como o Judiciário passa também a ditar uma Política Pública assume tanto a responsabilidade pelas escolhas feitas quanto, por outro lado, pelas conseqüências. Por sinal, o douto Poder Judiciário, dentro da nova ordem constitucional e democrática, não resistiria à menor discussão pública do tema, por mais bem-intencionado que seja. Como parece elementar, há limites também às suas decisões, mas os determinados por um real impiedoso.
A somatória da Filosofia da Linguagem e seus efeitos com uma hermenêutica selvagem e manipuladora inspira uma liberdade inexistente se o espaço é democrático. Daí, o uso indiscriminado do princípio da razoabilidade/proporcionalidade, inclusive contra a legalidade/constitucionalidade, o que é abominável, mas possível se não houver uma devida vigilância. Isso é Direito Alternativo às avessas e, por evidente, deve ser barrado se se quiser algo melhor no futuro.
Não serve, por seu turno, como argumento sustentável e diante da situação concreta, a panacéia do momento, ou seja, a ponderação de princípios, muito ao gosto de alguns americanófilos e germanófilos que insistem em fazer Direito Comparado sem o menor denominador comum. Afinal, não se precisa saber muito do common law e das matrizes que o regem e dentre elas os immemorial principles of the realm, algo inimaginável em um Direito de origem européia continental. São coisas assim que arrasam a ponderação(1) e levam à beira do ridículo o chamado ?peso? dos princípios e outras propostas do gênero, ou seja, em se tratando de Brasil, ?algo para inglês ver?, como na posição tomada diante da famosa lei antiescravagista. Verdadeiro feu follet; em geral usado com muita pompa e uma bela palavra em alemão, sem tradução, para impressionar os incautos.
Por outro lado, não cabe falar em hard case e easy case, no melhor estilo Dworkin(2). Ora, a proposta é impraticável em terra tupiniquim, mas, na hipótese concreta aqui em discussão, não há que cogitar. Afinal, o caso é fácil ou difícil? A resposta é óbvia, ma non troppo: mesmo que se pudesse sonhar ser um caso fácil, logo, nas hipóteses concretas, tornar-se-ia um caso difícil, como sói acontecer. Pois. De há muito autores como Lenio Streck já desmi(s)tificaram essa cisão entre casos fáceis e casos difíceis. Como ele diz, ?isso é pura metafísica?. O difícil de hoje é o fácil de amanhã, porque, acentua ele, a questão depende de pré-compreensão: o caso não é ?em si? difícil ou fácil. É, simplesmente, ?um caso?. Dá-se três passos para frente e se agregam três passos de complexidade, numa corrida viciosa, manejada como mero argumento retórico. Resolver mesmo, como interessa, não resolve. O busílis, enfim, não se aloja aí, de forma a receber resposta simples e rasteira.
Bueno, quando em jogo está a vida das pessoas ou a dignidade da pessoa humana precisaria arrecadar muito ?peso? para colocar no outro prato da balança e fazê-lo pender para ele. Na prática, porém, não é bem assim: juízes bem-intencionados, sérios e garantistas(3) mantêm serem humanos amontoados, empilhados, depositados, como se fossem ?coisas?, em cadeias e penitenciárias do país inteiro, tudo como se não fosse uma ofensa inominável à dignidade da pessoa humana, com freqüência chancelando a escolha ?dos que vão morrer?, como se noticia todos os dias(4). Os juízes, porém, têm-se por blindados contra o mal-estar (ou pensam estar) e contra as críticas, como se nada tivessem a ver com a situação. Nessas horas, nem sonham em ditar a Política Pública porque, no discurso, nada têm a ver com ela.
Ora, algo assim só é possível porque se não resolve pela ponderação, o que mostra não ser ela o mecanismo de solução concreta dos problemas, dos casos, pelo menos no Brasil. Basta ver a posição do e. STF sobre o problema (gravíssimo), um tanto quanto alienada e um pouco na base do adágio popular: ?morreu, morreu, que bom que não fui eu!? Quando um magistrado leva a sério a CR, seus princípios e regras(5) arrisca ser afastado de suas funções, como de fato aconteceu(6). Como disse a Comissão Pastoral de Direitos Humanos(7): ?Membros da Comissão (…) Foram testemunhas de barbáries cometidas contra os detentos, ao visitar, em 27 de setembro p.p., todas as celas daquele Distrito. Constataram que vários presos eram portadores de doenças de pele infecto-contagiosas. O espaço reservado a cada preso correspondia a 32 cm; alguns declararam ter projéteis de arma de fogo alojados na cabeça, na perna e até no olho, sem que lhes fosse dispensado tratamento médico adequado (não havia remédio sequer para aliviar-lhes a dor!). A situação era de absoluta desumanidade: paredes mofadas, teto preste a desabar, falta de iluminação, esgoto passando na porta da cela, detentos seminus. (…) A Comissão Pastoral de Direitos Humanos deseja que as condições de vida do povo sofrido e excluído, incluindo a população carcerária, sejam dignas de seres humanos e o respeito pela dignidade humana prevaleça sobre a barbárie.?
A matéria, enfim, está fora de ordem e não se resolve com soluções alienígenas, descontextualizadas. Como tem mostrado a história, quando o Direito luta contra a realidade é o real (lacaniano) que se impõe. E isso, por evidente, não é para ser louvado porque, como se sabe, ele não comporta apreensão e, portanto, não serve para nada, pelo menos se se olha desde aquilo que, de fato, interessa.
Sendo assim, há de haver limites; e eles continuam na lei, dentro do espaço do princípio da não-contradição (Aristóteles), com a CR iluminando tudo, sem exceção. E já há quem pense assim,(8) pelo menos em se tratando da presente matéria e, por todos, a ilustre Ministra Ellen Gracie Northfleet,(9) enfrentando a questão e fixando nova interpretação das normas constitucionais atinentes ao direito à saúde, em decisão que merece ser transcrita em parte:
?(…) Com efeito, a gestão da política nacional de saúde, que é feita de forma regionalizada, busca uma maior racionalização entre o custo e o benefício dos tratamentos que devem ser fornecidos gratuitamente, a fim de atingir o maior número possível de beneficiários. Entendo que a norma do art. 196 da Constituição da República, que assegura o direito à saúde, refere-se, em princípio, à efetivação de políticas públicas que alcancem a população como um todo, assegurando-lhe acesso universal e igualitário, e não a situações individualizadas. A responsabilidade do Estado em fornecer os recursos necessários à reabilitação da saúde de seus cidadãos não pode vir a inviabilizar o sistema público de saúde. No presente caso, ao se conceder os efeitos da antecipação da tutela para determinar que o Estado forneça os medicamentos relacionados ?(…) e outros medicamentos necessários para o tratamento (…)? (fl. 26) dos associados, está-se diminuindo a possibilidade de serem oferecidos serviços de saúde básicos ao restante da coletividade.?
O vital, porém, é o Poder Judiciário, na ordem posta, manter intacto seu ?lugar de referência?, agora colocado em dúvida pela sua própria visão pequena (por sorte só de alguns) na condução da gestão pública: se se meter ou continuar se metendo indevidamente (fora dos limites legais) nas Políticas Públicas, deve ter consciência de que responde e responderá pelas conseqüências. Mas isso não é bom para ninguém.
Nota:
(1) Lenio Streck, acertadamente, chama de ?repristinação da discricionariedade positivista?.
(2) Embora, não se esqueça, ele p&arte de outros pressupostos e não cai na esparrela da cisão feita pela teoria da argumentação jurídica.
(3) Se bem que se anda lendo mal Ferrajoli, isso quando se lê, de modo a permitir ao professor de Roma quase poder usar a paráfrase de Marx: je ne sui pas marxiste!
(4) Um só exemplo, de uma das cidades mais prósperas do país: Cascavel, no oeste paranaense. A cadeia local, com 140 vagas, (não) comportava em março de 2007, 639 presos, entre homens e mulheres, em que pese separados sabe-se lá como.
(5) Como sucedeu com aquele de Contagem Livingston José Machado , na grande Belo Horizonte, mandando soltar os presos após se enfadar de pedir providências aos órgãos próprios, pois em quatro celas da 2.ª Delegacia daquela cidade, onde cabiam, quando muito, 28 presos, estavam 113.
(6) Folha Online, 23.11.05, às 23h06.
(7) Carta Aberta de 06.12.05 (A situação carcerária e o juiz de Contagem).
(8) Ainda que com alguma diferença de base, v. Ap. Cível 2005.72.00.010339-5/SC, TRF 4.ª Região, Rel. Des. Marga Inge Barth Tesseler; da mesma relatora, Ag. Inst. 2007.04.00.004589-0/RS.
(9) Conforme decisão monocrática (de 02.03.07) proferida na Suspensão de Tutela Antecipada do Estado de Alagoas in DJU n.º 43, de 05.03.07, Ata n.º 21, Relação de Processos de Competência da Presidência.
Jacinto Nelson de Miranda Coutinho é professor Titular de Direito Processual Penal na Faculdade de Direito da Universidade Federal do Paraná. Especialista em Filosofia do Direito (PUCPR), Mestre (UFPR), doutor (Università degli Studi di Roma ?La Sapienza?). Chefe do Departamento de Direito Penal e Processual Penal da Faculdade de Direito da UFPR. Representante da Área do Direito junto a CAPES. Advogado. Procurador do Estado do Paraná. Conselheiro Federal da Ordem dos Advogados do Brasil, pelo Paraná.