Há duas semanas, temos apresentado um elenco de motivos pelos quais a vedação de Liberdade Provisória aos acusados por Crimes Hediondos deve ser considerada inconstitucional. Na esfera principiológica da Magna Carta, consideramos tal vedação ofensiva à dignidade da pessoa humana, ao devido processo legal e à presunção de inocência (ou de não culpabilidade, como querem alguns).
No que pertine ao princípio da presunção de inocência, impende obtemperar que a denúncia, como é cediço, se concretiza por juízo de natureza meramente hipotética, no qual é deduzida uma pretensão punitiva. Não representa, a denúncia, uma verdade insofismável, mas mera assertiva de verossimilhança, em construção ao longo da instrução criminal. Daí que o status libertatis do acusado não pode ser automaticamente determinado pela mera formulação da exordial acusatória.
Outrossim, a “classificação do crime”, de que fala o art. 41 do Código de Processo Penal, como parte integrante da denúncia, embora consista em auferição eminentemente objetiva, abre margem a certas idissincrasias que podem variar de promotor para promotor. Na medida em que variam as matizes culturais de cada membro do Ministério Público, pode variar, também, a capitulação de um mesmo enredo fático nas iras deste ou daquele tipo penal. O problema surge quando a classificação do crime oscila entre a imputação de “crime hediondo” e a imputação de “crime comum”.
Nestes casos, a capitulação da conduta imputada ao acusado fica à mercê da subjetividade do promotor de justiça. Dependendo de suas percepções, pode ser que o acusado seja enquadrado nas iras da lei dos crimes hediondos. Dependendo de suas percepções, pode ser que o acusado seja enquadrado nas iras de um outro crime comum. As conseqüências de uma forma de percepção e outra, porém, são as mais drásticas: está em jogo a liberdade provisória ou a segregação cautelar do acusado!
Não pode. A decisão acerca do status libertatis do acusado durante o trâmite da ação penal não pode ficar à mercê do bel alvitre da íntima convicção de um agente público. O acusado tornar-se-ia refém do subjetivismo ministerial, posto que o magistrado, neste caso, teria função meramente homologatória, consubstanciada em chancelar o pedido do Ministério Público, de acordo com a lei.
A idéia de se custodiar uma pessoa, sem o devido processo legal, sem a necessidade de uma sentença condenatória transitada em julgado, sem, ao menos, uma fundamentação objetiva, pela mera consideração da categoria delitiva a ela imputada constitui, em última análise, uma condenação antecipada e, por via de conseqüência, uma afronta à presunção de inocência.
Por outro cariz, sabe-se que a fase de recebimento da denúncia não comporta aprofundamentos meritórios. Trata-se de juízo de admissibilidade, de conteúdo declaratório. Portanto, o juiz não tem o condão de, no recebimento da denúncia, fiscalizar minuciosamente o exato enquadramento típico dos fatos. Entrementes, há casos em que, não raro, a subsunção do enredo fático à norma legal habita um liame tênue entre um tipo penal e outro. Quando isso ocorre, não é dado ao juiz corrigir a denúncia, prima facie, em seu recebimento. Tais considerações são relegadas ao cabo da instrução, quando o magistrado profere o decisum. Neste hiato de tempo, porém, entre o recebimento da denúncia e a sentença de mérito, o réu fica manietado ao subjetivismo deduzido na exordial acusatória, não podendo o juiz, em tese, adequar o enquadramento típico, posto que vacilante.
Ademais, cumpre ressaltar, por oportuno, que os institutos da liberdade provisória e da hediondez delitiva não se vinculam por nenhuma correlação lógica. Uma coisa é a natureza hedionda do crime. Outra, bem diferente, é o status libertatis do acusado durante a instrução criminal. Essa desconexão lógica entre os institutos será assunto da próxima semana.
Adriano Sérgio Nunes Bretas
é acadêmico de direito pela Faculdade de Direito de Curitiba – bretasadvocacia@yahoo.com.br.