Trata-se do problema metodológico das classificações em teorias sobre Responsabilidade Civil, examinando-se as principais tendências em alguns países da Europa e da América do Sul. Observa-se a exceção do caso brasileiro em relação às tendências verificadas em outros ordenamentos do Direito. Analisa-se a origem, função e desenvolvimento da analítica como na produção do conhecimento geral e jurídico.
1. Dissociar para analisar?
Separar o todo em partes menores para melhor analisá-lo é uma conduta de raciocínio ou método desenvolvido principalmente pela Escolástica, na Idade Média, que perdura até os nossos dias e que, em um certo sentido, contribuiu para amalgamar a Ciência tal como a temos hoje.
Antes disso, no pensamento Ocidental, a referência está no Helenismo Clássico. Costuma-se dizer que os gregos tinham um ?pensamento de totalidade?, quer dizer, não fragmentado, não fracionado em sucessivas especializações, decorrentes cada uma do aprofundamento das fases antecessoras.
Mormente a partir do século XVIII, com o Racionalismo Francês, onde culminou a filosofia de René Descartes, instaura-se no bojo da cultura científica a análise, vale dizer, a separação do todo em partes menores, como método para a Ciência.
É claro que, como em toda a regra, permanecem exceções quanto à primazia analítica. Por exemplo, na Estética, somente a apreensão do objeto dita ?de totalidade? configura de fato a fruição estetizante. A partir do momento em que se passa a analisar a obra de arte, tem-se então a Hermenêutica (também chamada de Teoria da Interpretação); mas não mais a experiência estética como tal.
Aliás, no livro ?Estética do Direito e do Conhecimento? (referido bibliograficamente ao final deste texto) já mencionávamos a importância da Estética como metodologia do conhecimento, por causa mesmo da questão da intenção de ?totalidade?, que preserva a visão do conjunto e não se curva a fracionamentos; algo interessante para o direito.
Voltando à analítica, cabe lembrar que Descartes, já nas Régles, mencionava a importância da síntese que seria a última das cinco regras áureas por ele preconizadas como conclusão ou fechamento do processo sistemático. Com isso, tem-se que, tradicionalmente, o método inicia-se com a análise e conclui-se com a síntese. Ora, considerando-se que a síntese só é possível porque a análise foi feita anteriormente (como na relação antecedente/conseqüente), tem-se que a conduta metodológica continua sendo analítica.
Porém, não foi só a partir do Naturalismo e do Racionalismo que a analítica instaurou-se como a tônica do pensamento científico. Já na Antiguidade, para exemplificar, o conhecimento na então chamada ?arte? (e não ?ciência?) médica tornava-se possível pelas dissecações que são análises em Anatomia. A Química, e antes dela a Alquimia, são até hoje saberes fundados nas separações, combinações e agregação de compostos, ou seja, análises e sínteses. A Gramática cuida da organização dos períodos em frases e destas em palavras, que por seu turno se formam pelas letras. A Filologia trata das raízes e dos traços comuns ou díspares a parcelas vernaculares. Também a Matemática, veja-se já em Pitágoras, ocupava-se de desmembrar equações e números, formulando preceitos lógicos até hoje presentes, v.g., modus ponens e tolendo tolens; enquanto a Física, muito antes de Aristóteles, especialmente em Demócrito, debruçava-se sobre o átomo, questões que pairam na inteligência até nossos dias, com os recentes achados da Nanotecnologia. Essas considerações servem apenas para ilustrar, rapidamente, o quão analítica tem sido a história do conhecimento ocidental.
Se este escrito tivesse a pretensão de historiar a ?analítica dos conceitos?, teríamos de tratar de vários pensadores, com especial ênfase na Teoria do Conhecimento de Emanuel Kant e, mais adiante, em Sigmund Freud, criador da Psicanálise, entre outros. Mas não é esse o caso; não nos proporemos agora a considerações históricas, e sim a rápidas pinceladas sobre o conceito de análise, para esboçarmos o raciocínio que se lhe aplica no que remonta à temática da Responsabilidade Civil.
A Responsabilidade Civil, mormente a partir da década de 80, pode ser considerada um fenômeno no conhecimento jurídico: rara vez se teve notícia de outro instituto que, a exemplo da Responsabilidade, tenha evoluído tão rapidamente, espraiando-se por todos os ramos do Direito, de modo a concretizar a assertiva de Orlando Gomes que ?a obrigação é o subsbtrato do direito?. E mais: além de migrar do âmbito civil para os demais ramos da ciência jurídica em velocidade ímpar, houve que a Responsabilidade instaurou-se de modo sólido e consistente, assentando-se assim nas áreas perpassadas.
Por tal razão, as atenções da inteligência jurídica centraram-se mais do que nunca sobre o problema da Responsabilidade, o que implica em pensar o ?dano? e, por conseguinte, a ?reparação?. Merece destaque a civilística Argentina, que legou para o mundo estudos notabilíssimos, entre os quais o chamado ?derecho de daños?.
Pois bem: os danos, por volta da década de 30, foram classificados por René Demogue, em seu Traité, na trilogia clássica, geralmente traduzida como ?danos leves, graves ou gravíssimos (ressalte-se que há discrepâncias quanto a essa terminologia classificatória. Entretanto, permanece a tripartição). Na verdade, ao elaborar a referida síntese, Demogue fundamentou-se principalmente nos juristas bizantinos e também no jusromanismo clássico.
A partir de 1959, florescem em Paris as célebres classificações de danos elaboradas por Max Le Roy e Pierre Tercier, que deram origem às indenizações tarifadas, em vigor em países como Uruguay e França.
De lá para cá, verificou-se principalmente na Europa que a reparação de danos, evoluída no bojo da Responsabilidade, teve como tônica metodológica o desdobramento em classificações mais detalhadas do que as originalmente formuladas por Demogue E aqui se situa o ponto central que este artigo pretende discutir.
Para exemplificar, veja-se em Brondolo e Giannini, como os danos chamados extrapatrimonias (em que pese a importante ressalva que Clayton Reis faz a uma possível impropriedade dessa expressão), subdividem-se em minúcias como danos psíquicos, biológicos, estéticos, dano à vida de relação, dano decorrente de erro médico, dano decorrente das diferentes prestações de serviços, etc., sendo que essas sub-espécies vão dando margens a detalhamentos e classificações cada vez mais minudentes, na medida em que se especializam. Quer dizer: as especificidades analíticas em Responsabilidade são cada vez maiores, tanto horizontalmente (i.e., por categorias de danos ou por categorias profissionais), como também verticalmente (i.e., o detalhamento de cada uma delas).
Na América do Sul, a obra do jurista cordobês Ramón Daniel Pizarro é expoente mundial em detalhamento e profundidade de classificações em Obrigações, cuja importância contemporânea tornou-se rapidamente um marco teórico dos mais significativos.
Ainda na juscivilística cordobesa, gostaríamos de destacar mais dois aspectos em Responsabilidade, que respeitam à metodologia analítica: o primeiro, na temática dos ?daños informáticos?, que considera a Internet atividade de risco. Neste ponto, duas posturas teóricas se apresentam, sendo uma a postura ?incluyente? (que inclui os danos praticados na Internet nas classificações gerais adotadas em Responsabilidade); e a outra postura, que é denominada ?excluyente? (trata o dano informático como categoria à parte das outras em Responsabilidade Civil).
O segundo aspecto, também oriundo do pensamento desenvolvido pelos juristas de Córdoba, remonta às modificações ocorridas no seio das Obrigações, nestes últimos tempos, propondo então novas novas classificações que mantêm ou até mesmo acentuam a ênfase sobre a metodologia analítica.
Uma possível transversalidade metodológica, que contribui para o consistente tecido que constitui o avanço atual das classificações que temos à lupa é trazido pela juscivilista portenha Dora M. Gesualdi, que traça com rigor os fatores objetivos de atribuição e relação de causalidade do âmbito da Responsabilidade Civil.
No caso brasileiro, porém, parece haver, em um certo sentido, alguma exceção à tendência analítica descrita nos parágrafos precedentes. O Direito Pátrio, tanto nas disposições legais como também por intermédio da Jurisprudência, revela-se mais afeito às indenizações dos danos extrapatrimonias de um modo unitário, que possa acolher sob uma única rubrica a reparação, evitando assim o desmembramento conceitual do dano em sub-espécies, diferentemente do que ocorre em outros ordenamentos, como os que examinamos anteriormente neste escrito.
Ora, não se pode negar que tais tendências ou condutas adotadas na reparação dos danos, sejam elas analíticas ou sintéticas, encerram aportes metodológicos do Direito que não passam desapercebidos às atenções do estudioso.
2. Indagações como síntese
A visão tradicionalista de Descartes ensinava que, se o método se inicia pela análise deve ser concluído pela síntese. Em tempos recentes, Gragner aponta a importância da remontagem do conceito, após a dissociação. Isso significa uma renovação metodológica da ?separação?, que não aniquila mas revitaliza – a importância analítica para o conhecimento de qualquer natureza, aí incluído o saber jurídico.
É comum ouvir-se ácidas críticas ao formalismo e a um possível hermetismo inerente aos saberes constituídos na Idade Média. Um deles é que ?quanto mais se separa, mais se organiza?; aforisma esse que embasa a metodologia dos trabalhos científicos, tal como vemos em nossos dias: monografias, dissertações e teses são dividas em partes que se organizam hierarquicamente, encadeando-se das divisões maiores para as menores, onde se objetiva a sucessão lógica do nexo causal entre os sucessivos tópicos.
Para quem diz que a Idade Média continua presente, é possível acrescentar que, a bem da verdade, a História é que é sempre presente, como fator inexpugnável de qualquer vivência.
Neste escrito, ao qual não há conclusão que possa encerrar a idéia, cabe em lugar dela uma síntese, como a que se faz neste tópico, mas que seja uma síntese aberta – do modo como formula Umberto Eco -porque a História continua. E com ela, permanecem vívidos os atos de pensar e conhecer, processados pela análise mais que forma, uma norma?
3. Referências
Anuário de Derecho Civil Doctrina. Tomo III, Córdoba: Facultad de Derecho y Ciencias Sociales de la Universidad Católica de Córdoba: Córdoba, 1997.
BRONDOLO, W.; GIANNINI, G.; MANGILI, F. et al. In danno biologico, patrimoniale, morale. 2a. ed., Milão: Giuffrè, 1995.
CARNEIRO, M. F. Método de valuación del daño moral de los lenguajes al derecho. Buenos Aires: Hammurabi, 2001.
-. Estética do direito e do conhecimento. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris Editor, 2002.
DEMOGUE, R. Traité des obligations en général. Paris: Librairie Arthur Rousseau, 1924.
DESCARTES, R. O discurso do método. (trad. de Elza Moreira Marcelina), Brasília: Editora da UNB, 1985.
GESUALDI, D. M. Responsabilidad civil Factores objetivos de atribución / relación de causalidad. 2ª. Ed., Buenos Aires: Hammurabi, 2000.
GIANNINI, G. Il risarcimento del danno alla persona nella giurisprudenza. Milão: Giuffrè, 1991.
MÜLLER, F. Discours de la méthode juridique. (traduit de l? allemand par Olivier Jouanjan), Paris: PUF, 1996.
PIZARRO, R. D.; VALLESPINOS, C. G. Instituciones de derecho privado Obligaciones. Buenos Aires: Hammurabi, 1999.
Maria Francisca Carneiro é doutora em Direito, mestra em Metodologia, bacharelada em Filosofia. Pós-doutoranda em Direito e em Filosofia.