Da excepcionalidade da prisão provisória

g131.jpgRegra, de um lado; exceção, de outro vetores de forças opostas a engendrarem uma tensão de paradoxo dialético. Costuma-se acreditar que a distinção entre regra e exceção cinge-se a um único critério: o aspecto quantitativo. Assim, a julgar por este raciocínio, que permeia o senso comum, a classificação de um evento na categoria das regras ou no grupo das exceções estaria sujeita ao critério de sua freqüência. Por conseguinte, surgiriam as duas faces de uma mesma realidade: de um lado, o evento mais freqüente classificado como regra; de outro lado, o evento menos freqüente enquadrado como exceção.

Ledo engano!

Em primeiro lugar, um ponto importante é a desmistificação do preconceito maniqueísta. Há um preconceito, arraigado na simbologia popular, segundo o qual um evento da realidade só pode ser enquadrado numa única categoria. De duas uma: ou regra ou exceção. Ora, urge superar esse mito maniqueísta. Não é porque um evento deixa de ser regra que será, obrigatoriamente, considerado como excepcional. Entre o extremo oposto da regra, de um lado, e o radical antagonismo da exceção, de outro lado, repousa um caudaloso leito onde se situa a maioria dos eventos. Não são, eles, nem regra, nem exceção. Adormecem, latentes, num hiato comum, entre os extremos da regra, de um lado, e da exceção, de outro lado.

Em segundo lugar, no universo da epistemologia, desde Wilhelm Dilthey, opera-se uma clivagem entre o mundo da natureza e o mundo da cultura: "a natureza se explica, a cultura se compreende", dizia o jusfilósofo, promovendo uma bifurcação entre o ser e o dever ser. Hodiernamente, é cediço que já não existem mais barreiras intransponíveis entre esses dois continentes. É superada a idéia de que se tratam de departamentos estanques, hermeticamente isolados uns dos outros. Ao revés. Ser e dever ser, natureza e cultura, explicação e compreensão entabulam um diálogo de interação recíproca, sem que isso signifique os esmaecimento das fronteiras cognitivas entre natureza e cultura. De qualquer forma, essa separação (entre ser e dever ser) serve para mostrar que a nota distintiva entre regra e exceção não reside, apenas, no aspecto quantitativo. Se todo o conhecimento se reduzisse à dimensão do ser, aí, sim, o aspecto quantitativo, quiçá, fosse satisfatório para distinguir a regra e a exceção. Entrementes, no âmbito do dever ser, o mero critério da observação quantitativa não é suficiente para se distinguir regra e exceção. Com efeito, não basta a mera contemplação da freqüência de um evento para elevá-lo ao status de regra ou rebaixá-lo à categoria de exceção. No mundo do dever ser, a freqüência de um evento não tem uma relação de necessidade obrigatória com a sua classificação: de um lado, é perfeitamente possível que um evento menos freqüente seja a regra; de outro lado, em diametral oposição, é absolutamente plausível que um evento mais freqüente seja a exceção.

Isso tem uma explicação: aquilo que é nem sempre deveria ser. É nesse panorama que deve ser abordada a excepcionalidade da prisão provisória.

No plano do dever ser, a prisão provisória restringe-se a casos extremos, em que ficar patenteada a excepcionalidade da cautela. Na Magna Carta, vislumbra-se referência ao princípio da excepcionalidade da prisão provisória, embutida na disposição do seu art. 5.º, inciso LXVI: "ninguém será levado à prisão ou nela mantido, quando a lei admitir a liberdade provisória, com ou sem fiança". No âmbito infraconstitucional, o artigo 310, parágrafo único, do Diploma Penal Adjetivo, coloca a custódia cautelar como ultima ratio, elegendo a liberdade provisória à categoria de regra. Na doutrina, igualmente, "observa-se, como traço comum na lição dos autores nacionais, que a prisão cautelar é mal imensurável, afirmando, todos, à unanimidade, que somente pode ser decretada em casos tais onde sua necessidade esteja plenamente demonstrada", conforme o abalizado ensinamento de Câmara (CÂMARA, Luiz Antônio. Prisão e Liberdade Provisória. Curitiba: Juruá, 1997, p. 90). De igual modo, Lauria Tucci assevera que a segregação cautelar está sujeita a um mecanismo de duplo afunilamento: primeiro, o abstrato, no qual o próprio legislador já excepciona casos taxativos, estritamente indispensáveis para a decretação da custódia cautelar; segundo, o concreto, no qual o magistrado colhe dados objetivos, demonstráveis na realidade empírica, que exijam a segregação cautelar como medida de necessidade extrema (TUCCI, Rogério Lauria. Persecução Penal, Prisão e Liberdade. São Paulo: Saraiva, 1980, p. 235).

No plano da realidade, entrementes, o quadro é diferente. Infelizmente. Malgrado disposição constitucional expressa, a despeito da doutrina unânime ressaltar o caráter excepcional da custódia cautelar, o que se tem assistido é que, cada vez mais, prisões provisórias proliferam-se, desenfreadamente, à esmo, de forma assustadora. Os números são estarrecedores: no Brasil, mais de 85 mil acusados respondem processos criminais sob custódia cautelar, segundo estatística colhida do site oficial do Ministério da Justiça; entre os presos do sexo masculino, existem cerca de 127 mil condenados em regime fechado, ao passo que os presos provisórios chegam a mais de 76 mil, o que, em termos comparativos, representa mais da metade do número de condenados. E o que é pior: muitos decretos de prisão preventiva, salvo louváveis casos, não se estribam em nenhum dado objetivo da realidade empírica, limitando-se a tergiversações genéricas, restringindo-se a conjecturas abstratas, por meio de fórmulas vazias, clichês aplicáveis a qualquer caso, desprovidos de conteúdo, destituídos de respaldo concreto no mundo dos fatos, provavelmente fruto da execrável prática digital de "copiar" e "colar", o que, em sede jurisdicional, é inadmissível, mormente em se tratando da liberdade individual de um cidadão, que ainda não foi sequer condenado. Claro que não se pretende colocar toda a experiência jurisprudencial na vala comum desses malsinados decretos. Não se pode generalizar. Há louváveis casos de decretos bem fundamentados, no qual se vislumbra a demonstração inequívoca da imprescindibilidade da custódia.

No cotejo entre o plano ideal e o plano real, denota-se uma abissal discrepância. De qualquer forma, impende repelir, de uma vez por todas, a banalização da prisão provisória, sob pena de estremecimento das garantias constitucionais que asseguram os alicerces do Estado Democrático de Direito. Da forma como está, a prisão provisória já deixou de ser exceção, há muito tempo, embora ainda não seja regra. Ainda bem (?) que o direito é uma ciência do dever ser. Assim, ao menos, num plano teórico, se servir de consolo, a prisão provisória ainda é exceção, embora, lamentavelmente, no plano empírico, esteja longe disso. Cumpre reverter esse quadro aproximando o plano teórico do empírico, diminuindo-se as prisões provisórias. Cabe, doravante, aos operadores do direito, devolver a custódia cautelar à sua condição de exceção. A liberdade é a regra; a privação dela, exceção.

Adriano Sérgio Nunes Bretas é advogado criminal em Curitiba, pós-graduando em Direito Penal e Criminologia pela UFPR.

bretasadvocacia@yahoo.com.br

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