1. Intróito. Continua nos Tribunais a polêmica em torno da compensação dos precatórios com tributos, em nosso Estado (ICMS e IPVA). O tema envolve questões históricas da origem dos débitos, com negligência do próprio Estado na defesa de seus interesses, sem olvidar culpa do próprio Poder Judiciário e o surgimento de precatórios em valores exorbitantes, bem como a questão do comércio paralelo dos precatórios. Sob outro prisma, surge a questão do exemplo: se o Estado não paga seus credores, como exige tanto dos contribuintes? Conforme disse o Ministro Marco Aurélio de Melo do STF, em entrevista a imprensa, a questão dos precatórios tem se convertido em horrendo calote institucionalizado. O Ministro Carlos Velloso, nos Embargos Declaratórios da ADI 2.851-1/RO, também disse: “É que vários Estados e Municípios simplesmente não honram os precatórios, com violação de princípios constitucionais, inclusive o da moralidade administrativa, pois o “caloteiro” é um imoral.” E agora, para piorar as coisas, vem mais uma PEC do calote, que posterga os pagamentos dos precatórios por mais quinze anos! Entretanto, o objetivo deste trabalho é dar enfoque aos temas mais polêmicos na questão da compensação dos precatórios, o que faremos por tópicos, a seguir.

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2. Do litisconsórcio dos Municípios. O Estado tem requerido a citação do Município para integrar a lide na qualidade de litisconsorte passivo necessário, sob pena de extinção do feito (art. 47, parágrafo único, do CPC). Fundamenta que parte do ICMS (até 1/4) compõe e integra o Fundo Estadual de Participação dos Municípios – FEPM, gerido pelo Estado do Paraná e, de titularidade dos Municípios, e como o art. 78, § 2.º, do ADCT, ao conferir poder liberatório de tributos da entidade devedora, nada dispôs sobre o destino dessa parcela, a eventual compensação poderá acarretar evidentes prejuízos aos Municípios onde se localizam os estabelecimentos dos contribuintes. Evidente a desnecessidade de citação dos Municípios. O Órgão Especial do TJPR decidiu: “Desnecessária a citação do Município onde se encontra a sede da empresa impetrante para integrar a lide como litisconsorte passivo necessário porque a compensação pretendida não é capaz de afetar o repasse do imposto devido aos Municípios, o qual independe da forma de quitação do débito, conforme disposto no art. 4.º, § 1.º, da Lei Complementar n.º 63/90, que regulamenta o art. 158, IV da Constituição Federal (…)”. (Mandado de Segurança n.º 582.956-9 – Rel. Des. Jesus Sarrão – Órgão Especial – DJe 28/8/2009).

3. Da inconstitucionalidade do Decreto Estadual 418/2007. No Incidente de Inconstitucionalidade n.º 424.838-4/02, o Órgão Especial do TJPR, em sessão de julgamento realizada em 2/10/2009, manifestou-se por maioria absoluta de votos, pela inconstitucionalidade do art. 1.º do Decreto Estadual n.º 418/2007, que veda a compensação dos precatórios com tributos, cujo voto, de lavra do eminente Des. Leonardo Pacheco Lustosa, encontra-se assim ementado: “Incidente de Declaração de Inconstitucionalidade. Decisão não unânime de incidente anterior. Ausência de vinculação ao resultado. Inaplicabilidade do parágrafo único do art. 481, CPC, ante a modificação da composição do órgão julgador. Conhecimento. Decreto Estadual n.º 418/2007, em face do Art. 78, § 2.º, do ADCT. Compensação de precatórios requisitórios com débitos do ICMS. Possibilidade. Incidente de Declaração de Inconstitucionalidade procedente”.

Um Decreto possui atribuições apenas para regulamentar um procedimento administrativo e em nenhum momento poderia impedir a compensação que se encontra prevista em texto constitucional. Ninguém será obrigado a fazer ou deixar de fazer alguma coisa senão em virtude de lei (CF, art. 5.º, II). Logo, o Regulamento serve apenas para a fiel execução da lei; não pode gerar direito ou obrigação novos. Dessa maneira, não pode o Regulamento impedir a compensação prevista na Carta Magna.

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Por outro lado, o próprio STJ, em recente decisão em caso oriundo do Paraná, no corpo do acórdão enfatiza: “Assim, a pretensão da recorrente deve ser, em parte, acolhida. Isso, porque as disposições do Decreto Estadual n.º 418/2007 são de cunho genérico, não se fazendo menção à natureza do precatório, se alimentar ou comum, nem à origem de sua formação. Essa generalidade impressiona, por não se poder admitir que um Estado Membro, de maneira indireta, faça tabula rasa das disposições constitucionais constante do art. 78, § 2.º, do ADCT. O Estado ao disciplinar sobre a extinção do crédito tributário, não pode impedir o efetivo cumprimento do comando constitucional inserto no art. 78, § 2.º, do ADCT, expresso ao dizer que “as prestações anuais a que se refere o caput deste artigo terão, se não liquidadas até o final do exercício a que se referem, poder liberatório do pagamento de tributos da entidade devedora.” É bom notar que esse entendimento já foi aplicado pela Primeira Turma desta Corte, no julgamento do RMS 26.500/GO, de relatoria do Ministro Teori Albino Zavascki. ….” (RMS 29.433/PR – Rel. Min. Benedito Gonçalves, 1ª Turma, julgado em 3/9/2009).

4. Da ordem cronológica. Determinar a observância da ordem cronológica, no caso da compensação dos precatórios, significa, em outras palavras, negar o direito à compensação. De fato, se aquela ordem for observada, inexiste motivo para a compensação, uma vez que o credor do precatório preferirá receber o valor em moeda corrente a compensá-lo com tributos. Fere a lógica do razoável tal interpretação na expressão de Luís Recasens Siches. O Pleno do STF, na Ação Direta de Inconstitucionalidade n.º 2.851/RO, julgada em 28/10/2004, decidiu pela desnecessidade de observância da ordem cronológica. O TJRS tem decidido: “Não-ferimento à ordem cronológica de pagamento dos precatórios. Se, por um lado, o art. 100, caput, da CF, estabelece ao pagamento dos precatórios a ordem cronológica de apresentação, por outro, no § 1.º, determina que o pagamento ocorra até o final do exercício seguinte. Uma vez não pago no exercício seguinte, há mora ex re. E se o devedor do precatório está em mora, e se ao mesmo tempo tem a receber daquele a quem deveria ter pago, nada mais lógico e de acordo com o direito natural a quitação até onde os créditos e os débitos se compensam. Não há falar, aí, em violação à ordem cronológica no pagamento dos precatórios, haja vista que o § 2.º do art. 78 do ADCT/CF-88, acrescido pela EC 30-00, não faz qualquer referência, por desnecessária, de que, com a possibilidade de compensação nele estabelecida, estava excepcionando a citada ordem.” (Apelação Cível Nº 70029422680, 1.ª Câmara Cível, Relator: Irineu Mariani, Julgado em 30/9/2009).

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5. Dos óbices existentes em legislação estadual. O art. 2.º do Decreto Estadual nº 418/2007 não foi declarado inconstitucional. O artigo citado dispõe: “Art. 2.º Ficam revogados os Decretos nº 5.003, de 12 de novembro de 2001 e n.º 5.154, de 17 de dezembro de 2001.” Assim, diante da revogação da legislação antecedente, inexistem mais os óbices previstos naquela (inscrição em dívida ativa, depósito de 50% em dinheiro e homologação da cessão).

6. Dos precatórios de natureza alimentar. O art. 78 do ADCT não exclui a possibilidade de compensação dos precatórios de natureza alimentar, mas apenas de seu parcelamento em 10 anos. Aliás, não tem sentido a exclusão. Se os precatórios de natureza alimentar deveriam ser pagos de forma preferencial e com urgência, devido a sua natureza, não tem fundamento impossibilitar a cessão e impedir que o credor receba ao menos parte de seu crédito. O atraso no pagamento dos precatórios de natureza alimentar em nosso Estado é grande, o que levou o Des. Silvio Dias a calcular que o credor que ingressar hoje na fila receberá seu crédito daqui a 25 anos, se vivo estiver (Declaração de voto no Agravo Regimental n.º 424.838-4/01). Por outro lado, a regra do art. 373, II, do Código Civil visa proteger o alimentando e não prejudicá-lo. É preferível admitir que o alimentando receba ao menos parte de seu crédito, enquanto vivo, cedendo o precatório, do que impedi-lo e ele morrer sem receber seu direito sagrado a verbas de remuneração reconhecidas pelo Poder Judiciário, com trânsito em julgado. “Destoa do bom-senso a interpretação literal, que leva a atribuir ao precatório privilegiado menos direito do que ao precatório não privilegiado, submetido ao regime conhecido como “calote do precatório” (Kiyoshi Harada, Precatório alimentar: possibilidade de compensação tributária à luz da evolução jurisprudencial, site Jus navigandi).

7. Dos precatórios de autarquias. Os precatórios de responsabilidade de autarquia estadual, como o Departamento de Estradas de Rodagem – DER, não impede a compensação autorizada pelo art. 78, § 2.º, do ADCT. A ausência de identidade entre credor e devedor do precatório não impede a compensação.  O STF decidiu: “Discute-se no presente recurso extraordinário o reconhecimento do direito à utilização de precatório, cedido por terceiro e oriundo de autarquia previdenciária do Estado-membro, para pagamento de tributos estaduais à Fazenda Pública. 2. O acórdão recorrido entendeu não ser possível a compensação por não se confundirem o credor do débito fiscal — Estado do Rio Grande do Sul — e o devedor do crédito oponível — a autarquia previdenciária. 3. O fato de o devedor ser diverso do credor não é relevante, vez que ambos integram a Fazenda Pública do mesmo ente federado [Lei n.º 6.830/80]. Além disso, a Constituição do Brasil não impôs limitações aos institutos da cessão e da compensação e o poder liberatório de precatórios para pagamento de tributo resulta da própria lei [artigo 78, caput e § 2.º, do ADCT à CB/88]. 4. Esta Corte fixou jurisprudência na ADI n. 2851, Pleno, Relator o Ministro Carlos Velloso, DJ de 3.12.04, … .” Dou provimento ao recurso extraordinário, com fundamento no disposto no art. 557, § 1.º-A, do CPC. Custas ex lege. Sem honorários. Publique-se. Brasília, 28 de agosto de 2007. Ministro Eros Grau – Relator.” (RE n.º 550400 – Rel. Min. Eros Grau – DJU 18/9/2007 – PP-00080 – Republicação: DJe-108 – DJ 24/9/2007 PP-00119). No mesmo sentido decisão monocrática do Ministro Eros Grau no RE 602.452-4/PR, em 27/8/2009.

8. Da homologação das cessões de crédito. Desnecessária a homologação judicial da cessão do precatório. A exigência de que ocorra homologação judicial da cessão de crédito do precatório se revela inaceitável. O art. 78, § 2.º, da Constituição Federal, que disciplina a compensação dos precatórios com débitos tributários, e os arts. 286 a 298 do Código Civil, que regulam a cessão de crédito, em nenhum momento exigem a homologação judicial de cessão de crédito para ter valor. No Código de Processo Civil de igual forma, inexiste tal exigência. É pura invenção de um simples Decreto Estadual, hoje explicitamente revogado. Não pode o Governador legislar sobre matéria processual ou civil por meio de Decreto. É da competência exclusiva da União legislar sobre tais matérias (art. 22, I, da Constituição Federal).  Na cessão de crédito exige-se apenas a notificação do devedor (CC, art. 290). Não existe nenhuma razão lógica e plausível para exigir homologação judicial. A cessão de crédito é “o negócio pelo qual o credor transfere a terceiro sua posição na relação obrigacional” (Orlando Gomes. Obrigações. 4.ª edição. Rio de Janeiro: Forense, 1976. p. 249). Não pode ficar sujeita a receber homologação judicial para ter eficácia. Na verdade, o que cabe ao cessionário fazer é habilitar seu crédito perante o juízo de origem do crédito, mediante simples petição, cientificando-se a credora (Fazenda Pública). Nada mais. Aliás, cuida-se de mera faculdade atribuída ao cessionário.

9. Da suspensão da exigibilidade do crédito tributário. Viável a suspensão da exigibilidade do crédito tributário, quando existe pedido administrativo de compensação de crédito com débito pendente de exame na esfera administrativa. O STJ pacificou a matéria: “Tributário – Compensação – Pedido administrativo pendente de homologação pelo fisco – Suspensão da exigibilidade do tributo – Fornecimento de certidão positiva de débito com efeito de negativa – CPD-EN. … 2. A alegação de compensação é verdadeira causa extintiva do direito do fisco, podendo ser alegada tanto na esfera administrativa, quanto na judicial, como medida impugnativa a cargo do contribuinte. Alegada na esfera administrativa, tem o efeito de suspender a exigibilidade do tributo, na forma do art. 151, III, do CTN. 3. Enquanto pendente de análise pedido administrativo de compensação, suspende-se a exigibilidade do tributo, hipótese em que não pode negar o fisco o fornecimento de certidão positiva de débitos, com efeito de negativa, de que trata o art. 206 do CTN. 5. Recurso especial conhecido em parte e, nessa parte, não provido.” (REsp n.º 774.179/SC – Rel. Min. Eliana Calmon – 1.ª Seção – DJU 10/12/2007 – p. 283).

10. Da concessão da segurança para determinar a reapreciação do pedido de compensação na esfera administrativa. Outra discussão que surgiu em nosso Tribunal diz respeito à possibilidade ou não, em sede de mandado de segurança, de determinar a reapreciação do pedido no âmbito administrativo, afastando os óbices opostos, como o Decreto 418/2007, crédito de natureza alimentar, homologação da cessão etc. Em matéria tributária é admissível que o juiz ou tribunal afaste os óbices opostos pela Administração, para a compensação, e determinar a reapreciação do pedido. Não se pode cogitar aqui de sentença condicional. O STJ tem decidido reiteradamente que não cabe ao Judiciário fazer o acertamento das contas, em matéria de compensação tributária. Vejamos: “Ao Poder Judiciário compete declarar o direito à compensação quando sobre ele paire dúvida jurídica, mas o procedimento administrativo que conduz à extinção do crédito tributário é de competência da Administração tributária.” (REsp 1010142/SP – 2.ª Turma do STJ – Rel. Min. Eliana Calmon – DJe 29/10/2008);  “Incumbe à administração averiguar o acerto de contas procedido pelo contribuinte, atividade que escapa à competência do judiciário.” (REsp 120394/SC; REsp 120413/RS); Em recente mandado de segurança oriundo do Paraná, disse: “dou parcial provimento ao recurso ordinário para que a autoridade administrativa competente dê regular processamento ao pedido de administrativo da impetrante, no que toca ao Precatório protocolado no TJ/PR sob o n.º 122.457/2000.” (RMS 29.433). Noutro mandado de segurança, no mesmo sentido: “Além disso, como bem destacou a Corte de origem, o provimento jurisdicional restringe-se aos critérios de compensação, impedindo que a autoridade fiscal objete a compensação dos créditos do IPI com débitos fiscais vincendos do período pós quebra, ressalvando-se que a apuração dos montantes deve ser efetuada na via administrativa própria.” (REsp 786.660/PR). Não é na via judicial que se extingue o crédito tributário por compensação, mas no âmbito administrativo. Dessa maneira, indubitável que não cabe ao Poder Judiciário determinar em definitivo a compensação, que se fará sempre pela Administração.

11. Do pedido inicial. Incumbe ao advogado realizar o pedido inicial no mandado de segurança de modo completo, a fim de evitar dúvidas e obter uma tutela jurisdicional eficaz. Impõe-se pedir que sejam afastados todos os óbices normalmente opostos pela Administração (natureza alimentar, ordem cronológica, precatórios de autarquias, necessidade de homologação da cessão, inscrição em dívida ativa, depósito de 50% em dinheiro, e art. 1.º do Decreto 418/2007, bem como pedir a suspensão da exigibilidade do crédito tributário, até que o pedido seja reapreciado na esfera administrativa, desde que não ajuizada ainda a execução fiscal).

12. Da competência e da autoridade coatora. Antes de 9-2-2007, a competência para apreciar os procedimentos administrativos de compensação de precatórios era do Diretor Geral da Secretaria de Estado. Em consequência, a competência para julgar o mandado de segurança das Varas da Fazenda Pública. A partir de 9/2/2007, conforme Resolução/SEFA 017/2007, a competência para apreciar tais pedidos passou para o Secretário de Estado da Fazenda e, por conseguinte, a competência para apreciar os mandados de segurança originariamente ao Tribunal de Justiça (1.ª a 3.ª Câmaras Cíveis). Finalmente, a contar de 4-6-2008, a competência passou para o Governador do Estado, conforme Decreto n.º 2749, e a competência para apreciar o mandado de segurança, ao Órgão Especial do Tribunal de Justiça.

13. Conclusão. Enfim, cumpre ao Poder Judiciário, em sua nobre função de julgar, interpretar as regras constitucionais e infraconstitucionais, sem esquecer os postulados da ética, razão e bom-senso. Se, por um lado, muitos contribuintes aproveitam-se da regra do art. 78 do ADCT para pagar menos tributos, por outro lado o Estado não paga os precatórios – existe Estado da Federação que, segundo informações, não paga nenhum precatório há mais de 20 anos -, verbas remuneratórias reconhecidas pelo Poder Judiciário simplesmente deixam de ser pagas e o credor morre na fila de espera (precatórios de natureza alimentar). Se os Estados e Municípios honrassem os precatórios, não existiria mercado paralelo. Aliás, a União paga em dia seus precatórios. Urge uma solução justa e adequada para esses conflitos de interesses. É importante encontrar o ponto de equilíbrio. Como ensina Cândido Rangel Dinamarco: “É indispensável que também na interpretação dos fatos, das provas e dos textos saiba o Juiz optar pela solução mais justa e consentânea com os valores substanciais da nação.” Assim, hoje entendo que a solução mais justa é afastar os óbices opostos pela Administração e determinar a reapreciação do pedido de compensação na esfera administrativa em sede de mandado de segurança. Por outro lado, deve prestar uma tutela jurisdicional completa com o afastamento de todos os óbices opostos de regra pela Administração. Noutro giro, existe o caminho da ação declaratória e, ainda, a nomeação dos precatórios à penhora.

Lauro Laertes de Oliveira é desembargador do Tribunal de Justiça do Paraná.