Em 31 de janeiro foi divulgado (junto ao site do Ministério da Justiça) o Anteprojeto de Lei que pretende alterar e acrescentar dispositivos ao atual Código de Trânsito Brasileiro (CTB). O texto contém uma exposição de motivos interessante, destacando a necessidade de ?despertar a consciência nas pessoas de que é preciso mudar a atitude no trânsito?(1), e oferece prazo (até 3 de março) para Consulta Pública pela população.
Gostaria, portanto, de oferecer minha contribuição, ressaltando três fatores essenciais. Primeiro, sabe-se que não temos necessidade de novas leis de trânsito; alguns ajustes talvez. Porém, a real necessidade volta-se ao cumprimento da lei,(2) de modo a afastar a sensação de impunidade que assola a nação brasileira. Segundo, a Educação para o Trânsito (promovida por meio de cursos de reciclagem, por exemplo) não deveria ser vista como ônus, sanção ou punição, sob pena de afastar ainda mais os condutores de veículos das salas de aula, dos livros e das normas de circulação e de segurança no trânsito. Por fim, a idéia de que o agravamento de sanções produz imediata elevação dos níveis de segurança é um equívoco.
Como ressalta GERALD WILDE, ?Um dos problemas relacionado à severa punição parece ser que a lei não pode ser fiscalizada se seu rigor excede a opinião popular a respeito da imoralidade ou desvios dos padrões do ato em questão. […]. Os fatores que de fato contribuem significativamente para a intimidação são a certeza e a rapidez da punição e não o tamanho da punição?.(3) Por tais motivos, qualquer tentativa de ?despertar a consciência nas pessoas? em relação ao trânsito em condições seguras deve voltar-se à motivação dos condutores e incentivo à direção segura, de modo a reduzir o nível de risco subjetivamente aceito pela população.
A busca do trânsito seguro deve pautar-se no aperfeiçoamento dos condutores de veículo (por meio de cursos de reciclagem) e na motivação dos usuários das vias, por meio de planos de incentivo aos bons motoristas.
1. Cursos de Reciclagem
Os cursos de reciclagem (realizados pelos órgãos de trânsito no Brasil) possuem 30 (trinta) anos de história e finalidades pedagógicas que precisam ser resgatadas. Nascido como um retest (ou seja, sob a forma de novos exames para que o condutor-infrator pudesse voltar a dirigir, na Lei n.º 6.731/79), o instituto passou a ser denominado reciclagem e chegou ao Detran-SP, em 1983, como ?Curso de Reciclagem para Motoristas Infratores e Motoristas Condenados por Crimes de Trânsito?.
Encontram-se previstas atualmente na legislação brasileira apenas três espécies de cursos de reciclagem: (i) como requisito para a manutenção da licença para dirigir (art. 261, § 2.º, CTB, e Anexo II-5 da Res. 168/04, do Contran); (ii) como substitutivo da penalidade de Multa (art. 267, § 2.º), e (iii) como sanção (art. 268, CTB)(4).
1.1. Curso de Reciclagem: requisito para a manutenção da licença para dirigir
Na hipótese de suspensão da licença para dirigir, o interessado que desejar reaver sua CNH poderá, ao término do prazo de suspensão, realizar (na forma do artigo 261, § 2.º, do CTB) o Curso de Reciclagem para Condutores Infratores, identificado junto ao item 5, do Anexo II, da Resolução n.º 168/04, do Contan.
Assim, cumprido o prazo da penalidade de suspensão, poderá o interessado comprovar a conclusão com aproveitamento do curso de reciclagem e resgatar os efeitos da licença previamente suspensa. Como se percebe, o curso previsto no art. 261, § 2.º, do CTB, não será imposto ao infrator, mas poderá ser realizado no caso de o interessado desejar resgatar sua licença para dirigir, ao término do prazo da penalidade de Suspensão da Licença para Dirigir(5).
1.2. Curso de Segurança Viária: substitutivo da Multa
Uma segunda espécie de reciclagem encontra-se prevista no art. 267, § 2.º, do CTB, que descreve a possibilidade de substituição da penalidade de Multa imposta a pedestres por participação em Cursos de Segurança Viária. Consta da Lei de Trânsito: ?O disposto neste artigo aplica-se igualmente aos pedestres, podendo a multa ser transformada na participação do infrator em cursos de segurança viária, a critério da autoridade de trânsito.?
1.3. Freqüência Obrigatória em Curso de Reciclagem: sanção
A análise da natureza jurídica das sanções do CTB revela que a Freqüência Obrigatória em Curso de Reciclagem (prevista no art. 256, inc. VII, e no art. 268, do CTB) constitui, em verdade, sanção de natureza criminal (como espécie de pena restritiva da liberdade), que viola os princípios garantistas do Direito Penal moderno, em especial o princípio da legalidade, e os princípios constitucionais do processo, com destaque para o devido processo legal, juiz natural, contraditório e ampla defesa(6).
A origem dessa sanção foi revelada por RENÉ ARIEL DOTTI,(7) junto ao Anteprojeto da Parte Geral do Código Penal (publicado no DOU de 11/3/1981), que cominava uma pena restritiva da liberdade sob a denominação Aprendizado Compulsório:
?Art. 48. O aprendizado compulsório consiste na freqüência a curso ou ciclo de palestras, no qual o condenado por crime culposo venha a adquirir conhecimentos necessários a evitar a ocorrência de nova infração e a estimular o dever social de cuidado. Parágrafo único. A pena de aprendizado compulsório poderá ser aplicada isoladamente nos crimes culposos cuja pena máxima cominada não seja superior a um ano.?
Sanção de tal grandeza, restritiva de direito fundamental expressamente consagrado pela Constituição da República (i.e., a liberdade de circulação – art. 5.º, inc. XV, da CR/88), não pode ser imposta por autoridade que não seja dotada de jurisdição, em flagrante violação ao princípio da proporcionalidade, tampouco poderia ser aplicada ?independentemente de processo judicial? (aliás, como erroneamente contempla o art. 268, inc. III, do CTB).
Havendo, assim, uma ?intrínseca ligação entre as noções de liberdade e dignidade, já que (…) a liberdade e, por conseguinte, também o reconhecimento e a garantia de direitos de liberdade (e dos direitos fundamentais de um modo geral), constituem uma das principais (senão a principal) exigências da dignidade da pessoa humana?,(8) pode-se afirmar que ?o legislador utilizou-se de mecanismo inadequado, ou no mínimo desnecessário?,(9) ao descrever a Freqüência Obrigatória em Curso de Reciclagem como sanção no CTB.
1.4. Sugestão: cursos facultativos de reciclagem
Pesquisando a legislação estrangeira, constata-se que os cursos de reciclagem são geralmente empregados: (i) como requisito para a manutenção da licença para dirigir, (ii) como causa especial de redução da sanção imposta, ou (iii) em substituição à penalidade de Multa.
O Legislador do Código de Trânsito Brasileiro não previu a possibilidade de cursos de reciclagem como causa especial de redução dos pontos acumulados ou das penalidades impostas. Preferiu atribuir aos cursos de reciclagem cunho negativo [como se escola e estudo fossem punições!]; esquecendo-se que educação e cursos de aperfeiçoamento devem ser vistos de forma positiva, como bônus ou instrumentos para obter-se sucesso profissional e habilidades pessoais.
Exemplo interessante foi localizado no Direito Inglês, sob o rótulo Rehabilitation Course. Este Curso de Reabilitação possui natureza de causa especial de redução de pena e, sendo concluído com aproveitamento, poderá reduzir o período de suspensão ou de cassação da licença para dirigir em até 3/4 (três quartos) da sanção, desde que o período a ser cumprido não se torne inferior a 03 (três) meses (RTA 1991, s. 30). Desprovido de qualquer carga punitiva, o Curso de Reabilitação Inglês pode ser realizado espontaneamente por aquele que desejar reduzir os efeitos das penalidades previamente impostas(10).
A partir desse instituto, sugiro trazer à legislação pátria Cursos Facultativos de Segurança Veicular, que possam aperfeiçoar a técnica dos condutores de veículos e, ao mesmo tempo, oferecer um bônus àqueles que o concluírem com sucesso; qual seja, a redução dos pontos de demérito acumulados ou a redução do prazo das penalidades (de suspensão ou de cassação da licença) previamente impostas.
A sugestão é relevante, e não se encontra isolada na doutrina, sendo expressamente realizada por WALDYR DE ABREU,(11) sob a denominação ?cursos de aperfeiçoamento espontâneos?, para reduzir pontos de demérito acumulados:
?No art. 261, (…). Vemos no § 2.º, seguinte, que, cumprida a suspensão, a carteira só será devolvida após o curso de reciclagem. Procede inteiramente a exigência. Mas esse curso, como ocorre nas melhores legislações estrangeiras, deveria ser oferecido também aos condutores sob o risco crescente de chegar aos vinte pontos. Dar-lhes a oportunidade de espontaneamente buscar o curso oficial de reciclagem, para reduzir-lhes alguns pontos negativos, enquanto melhorariam sua técnica e, sobretudo, sua atitude no trânsito.?
1.5. Sugestão: Curso de Segurança Viária em substituição à multa
Acreditando na capacidade pedagógica dos cursos de reciclagem, entendo que o Curso de Segurança Viária substitutivo da Multa (previsto art. 267, § 2.º, do CTB, e destacado no item 1.2., supra) também deveria ser estendido aos condutores de veículos automotores que realizassem infrações de natureza leve ou média; podendo ser exigidos outros requisitos, como a não reincidência do beneficiado ou ausência de pontos de demérito nos últimos 12 meses.
Desse modo, os Cursos de Segurança Viária poderiam ser realizados, em substituição à penalidade de Multa, em duas hipóteses: (i) infrações realizadas por pedestres (como já previsto no CTB), e (ii) infrações leves ou médias realizadas por condutores de veículos automotores.
2. Programas de incentivo aos bons motoristas
A legislação de trânsito previu duas espécies de planos de incentivo à direção segura. A primeira encontrava-se prevista no artigo 288, do Decreto paulista n.º 6.856, de 1934 (denominado Primeiro Regulamento Geral de Trânsito para o Estado de São Paulo), que previa referências elogiosas aos condutores que não realizassem infrações por longo período de tempo; que comprovassem a realização de ato humanitário em acidente de trânsito; que restituíssem aos passageiros ou à polícia objetos de valor esquecidos em seu veículo ou encontrados em via pública, ou que prestassem auxílio espontâneo ou fossem requisitados pela polícia na intervenção de crimes.
A segunda espécie teve breve duração (de fevereiro de 2001 a abril de 2002) e consistia na concessão de carteira de habilitação com faixa dourada ao condutor que ?passar 3 (três) anos consecutivos sem cometer qualquer espécie de infração ao Código de Trânsito Brasileiro e não esteja respondendo a inquérito policial ou ação judicial por delito de trânsito? (Resolução n.º 122/01, do Contran, ora revogada pela Res. n.º 133/02). Atualmente, não há programas de incentivo aos bons motoristas brasileiros.
A introdução de planos de incentivo constitui meio ?mais efetivo em aumentar a segurança do que os melhoramentos de engenharia, a seleção de pessoal e outros tipos de intervenção (incluindo ação disciplinar, […])?(12). Nesse sentido, além de Cursos Facultativos de Segurança Viária (como causa de redução de penalidades ou de pontos de demérito), também poderiam ser introduzidos na legislação de trânsito brasileira programas de incentivo ao trânsito em condições seguras, com o objetivo de motivar os condutores a realizarem ações mais seguras e reduzir o nível de risco subjetivamente aceito.
Exemplo interessante foi destacado por GERALD WILDE (sob a denominação California?s ?good driver? incentive program), em que ?se ofereceu a motoristas na população geral uma grátis extensão de sua CNH por um ano em troca de cada ano de dirigir sem acidentes?. O resultado foi a redução da taxa de acidentes ?em 22% no primeiro ano do programa?(13).
Como se percebe, um plano de incentivo eficiente não exige prêmios grandiosos; bastaria a concessão de um diferencial (como (i) a outorga de carteiras de habilitação com faixa dourada aos bons motoristas, (ii) a possibilidade de substituição de penalidades de Multa por advertências [como sugerido no item 1.5., supra], ou (iii) um programa gratuito de renovação da licença para dirigir àqueles que não apresentarem infrações de trânsito nos últimos doze meses), para que os condutores de veículos adotassem comportamentos mais seguros no trânsito. Prefiro sonhar com prêmios a viver assombrado por castigos!
Considerações finais.
AUGUSTO CURY sustenta que ?Educar é acreditar na vida, mesmo que derramemos lágrimas. Educar é ter esperança no futuro, mesmo que os jovens nos decepcionem no presente. Educar é semear com sabedoria e colher com paciência. Educar é ser um garimpeiro que procura os tesouros do coração?(14).
O fenômeno trânsito apresenta um conjunto de normas de circulação moderno e que, no entanto, carece de efetivo cumprimento. Motivar os condutores a adotarem comportamentos mais seguros, por meio de Educação para o Trânsito e de planos de incentivo, constitui estratégia mais adequada que simplesmente aumentar o valor das sanções e concentrar o sistema punitivo do CTB em torno da penalidade de Multa.
Aos maus motoristas deve ser aplicada a lei, de modo a impor-lhes as penalidades de suspensão e de cassação da licença para dirigir (na forma já prevista no Código de Trânsito Brasileiro). Por outro lado, os bons condutores merecem destaque, como exemplos positivos a serem seguidos; oferecendo-lhes, ainda, um sistema de cursos facultativos de segurança viária (que permita aprimorar seus conhecimentos e, até, reduzir eventuais pontos de demérito) e um plano de incentivo justo, que lhes proporcione vantagens pecuniárias e motivação para a realização diária do trânsito em condições seguras.
Notas:
(1) O texto do Anteprojeto encontra-se disponível em www.mj.gov.br
(2) HONORATO, Cássio M. Multas ?no valor correspondente ao veículo infrator?: confisco ou sanção isonômica? O Estado do Paraná. ano 57, n. 17161. Curitiba, 27 jan. 2008. Caderno Direito e Justiça. ano XV, n. 773, p. 05.
(3) WILDE, Gerald J. S. O limite aceitável de risco: uma nova psicologia de segurança e de saúde: o que funciona? o que não funciona? e por que? Trad. Reinier J.A. Rozestraten. São Paulo: Casa do Psicólogo, 2005. p. 260.
(4) HONORATO, Cássio M. Sanções do Código de Trânsito Brasileiro: análise das penalidades e das medidas administrativas cominadas na Lei n.º 9.503/97. Campinas: Millennium, 2004. p. 172-174.
(5) HONORATO, Cássio M. Sanções do Código de Trânsito Brasileiro, p. 143 e 175.
(6) HONORATO, Cássio M. Sanções do Código de Trânsito Brasileiro, p. 179-184.
(7) DOTTI, René Ariel. Curso de Direito Penal: parte geral. Rio de Janeiro: Forense, 2001. p. 470.
(8) SARLET, Ingo W. Dignidade da pessoa humana e direitos fundamentais na Constituição Federal de 1988. 2.ª ed., Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2002. p. 45-46.
(9) BARROS, Suzana de Toledo. O princípio da proporcionalidade e o controle de constitucionalidade das leis restritivas de direitos fundamentais. 3.ª ed., Brasília (DF): Brasília Jurídica, 2003. p. 179.
(10) HONORATO, Cássio M. Sanções de Trânsito na Common Law: análise doutrinária dos sistemas jurídicos inglês e norte-americano. Revista Brasileira de Ciências Criminais, São Paulo, ano 13, vol. 52, p. 92, jan.-fev. 2005.
(11) ABREU, Waldyr de. Código de Trânsito Brasileiro: infrações administrativas, crimes de trânsito e questões fundamentais. São Paulo: Saraiva, 1998. p. 108, 116 e 174.
(12) WILDE, Gerald J. S. O limite aceitável de risco, p. 269.
(13) WILDE, Gerald J. S. O limite aceitável de risco, p. 274.
(14) CURY, Augusto Jorge. Pais brilhantes, professores fascinantes. Rio de Janeiro: Sextante, 2003. p. 09.
Cássio M. Honorato é promotor de Justiça no Estado do Paraná, mestre em Direito e Especialista em Trânsito pela Polícia Rodoviária de SP.