Na cadeira do salão surgem as conversas e, muitas vezes, o apoio que resulta em força. É com uma rapidez surpreendente que Debora Caroline Pereira, também chamada de Deby, trança o cabelo das clientes e exalta duas questões ainda mais profundas ao fazer isso: a identidade e a autoestima. Deby é proprietária do Deby Tranças, um pequeno mas poderoso salão especializado em cabelos afro que fica na Avenida Jaime Reis, no bairro São Francisco, em Curitiba.

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O salão existe há 20 anos e é muito mais do que um espaço de beleza. É um acolhedor fomentador de ideias. O negócio surgiu por conta de uma inquietação de Deby que queria encontrar a sua identidade e aprender a fazer o penteado que representa a história e o protagonismo das pessoas negras.

“Eu sou curitibana, mas minha mãe é branca, do Rio Grande do Sul, com mistura indígena. O meu pai é negro, vindo da Bahia. Meu cabelo é um misto. Na escola não tinha ninguém com o cabelo igual ao meu e aí começam aquelas frases, aqueles xingamentos e aquilo realmente doía, incomodava, mas eu não sabia como lidar. Ninguém nunca soube me dizer nada. Segui a infância não gostando do cabelo, não me amando, me sentindo feia, não merecedora, não capaz. Tudo isso levou a um ponto de interrogação muito grande. Quando você vai buscar bonecas, brinquedos, na década de 90 não tinha. E Curitiba então, com certeza zero. A falta de produtos, brinquedos e coisas que me representassem em Curitiba me fez sentir a necessidade de ter algo que fosse para mim, com a minha cara”, conta Deby.

Foto: Átila Alberti / Tribuna do Paraná.

A trancista relata que a interrogação que apareceu na infância se estendeu durante toda a adolescência, com o sonho de ter tranças sempre batendo na porta. Filha única, cresceu com a mãe cuidando dela sozinha e essa era a única referência, uma pessoa que não era parecida com ela.

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“Essa falta de referência me fez buscar pessoas que eu perguntava sobre. ‘O que você sabe sobre o cabelo?’ Mas a trança era meu maior motivador. ‘Como faz trancinhas? Como faz aquela trancinha grudadinha?’ Eu fiquei dos 12 aos 18 anos perguntando. Para cada pessoa que eu conhecia, me conectava, eu perguntava. Meu sonho era trancinha”.

Em um determinado dia, ainda adolescente e com o dinheiro da conta de água no bolso, Deby entrou em um salão em Curitiba para fazer as tranças. No entanto, o tratamento ríspido que recebeu fez com que ela deixasse o local.

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“Não gastei meu dinheiro da água. Mas [eu falei naquele dia] ‘eu vou aprender e vou fazer em mim e eu prometo que nunca mais vou ser destratada em nenhum lugar’. Porque a gente chega no salão e dizem que o cabelo é difícil, duro, eu tinha cansado daquilo. Foram anos escutando aquilo”.

Até que um dia Deby estava na casa dos avós paternos e encontrou uma tia que sabia fazer tranças e tinha feito um curso em São Paulo. Maravilhada, Deby decidiu que queria o mesmo. Ela relembra que na época estava com 18 anos e que o pai havia dito que pagaria a habilitação dela.

“Eu falei ‘não quero carro, eu quero meu cabelo. Quero ter o cabelo dos meus sonhos’. Ele me deu o curso no lugar da habilitação. Tirei a habilitação esses tempos e não me fez falta nesse sentido. Fui lá e fiz o curso no interior de São Paulo, de 18 para 19 anos, e voltei para casa”.

Ao retornar do curso, Deby pendurou no portão de casa uma placa que dizia: trança raiz. Assim começou a caminhada, com ela atendendo na casa em que morava com a mãe. Aos poucos, conseguiu substituir o trabalho que fazia com reciclagem pelo trabalho de trancista e investiu em novos sonhos. Com uma bolsa de 100% pelo ProUni, Deby se formou em Serviço Social. Para conseguir estudar e se manter, trançava o dia todo em casa e ia para a faculdade no período da noite.

“Eu vi que nisso eu consegui empreender, cuidar da minha mãe, da casa e estudar. Então uma das saídas para dar sequência na vida acadêmica, realizar um sonho e conseguir sair do subemprego através dos estudos, é o empreender. Com isso consegui fazer faculdade. Abri um salão no Centro, consegui juntar meninas com a mesma história que a minha. Então meu espaço sempre foi um lugar que acolhe mães, meninas com filhos que não têm profissão. São situações de violência, de relacionamentos muito difíceis que elas saíram por conta de aprender uma profissão. Não é só pela profissão, é pelo incentivo. É mostrar para o outro que ele também consegue. Desde que eu me lancei pra minha arte mantenho minha família. Casei duas vezes, separei, tenho duas crianças. Tudo aconteceu, mas eu consigo me manter porque eu empreendo e trabalho com a estética”, destaca Deby.

Crespura

Uma ferramenta importante que Deby trabalha no salão é o Crespura, uma cartilha lançada em 2021 e organizada por Nicéa Quintino Amauro e Neli Gomes da Rocha, com o apoio de várias instituições, como a Universidade Federal do Paraná (UFPR) e o próprio salão da Deby.

A trancista explica que o Crespura fala sobre a estrutura e composição química do cabelo. Como a maioria dos livros traz apenas referências de cabelos lisos, a cartilha evidencia como é a formação do cabelo crespo, quais são as plantas adequadas para os cuidados com o cabelo e qual é a função do cabelo para a cultura negra.

“Assistimos, hoje, em todos lugares ― televisão aberta, filmes, videoclipes, redes sociais, espaços urbanos ― mulheres negras celebrando a diversidade de seus cabelos. Para nós, pessoas negras, homens e mulheres, o fio que cresce em nossa cabeça não é apenas cabelo, mas um marcador social, um artefato político. Nesse viés, muitas das lutas das mulheres negras giram em torno da estética capilar e da mudança na representação das madeixas crespas e encaracoladas. Sabe por quê? O cabelo, para nós, é uma ode à nossa criatividade, individualidade e beleza. É a nossa coroa!“, diz parte da introdução do Crespura.

A cartilha está disponível on-line. Foi no salão de Deby que também surgiu a iniciativa de começar a Marcha do Orgulho Crespo em Curitiba.

O poder das mães

O objetivo de dar oportunidade para mais mulheres é um traço da infância de Deby. Desde pequena, além da procura incansável pela identidade, ela também via a mãe batalhar na reciclagem para sustentar a família. As dificuldades do trabalho e a criação da mãe solo fizeram ela perceber rápido a importância que o apoio traz.

“Um dia eu lembro que estava bem difícil de carregar uma carga de ferro e o pior dos materiais é o ferro. Ele é o que mais castiga e menos dá retorno. Eu lembro que na subida tava muito pesado e eu não aguentava, eu era muito nova, tinha 12 anos. Minha mãe falou ‘filha, empurra’. Eu falei ‘mãe, eu não aguento, é muito pesado’. Naquele dia eu fiz uma oração e falei ‘Deus, se você mudar minha vida, eu vou ensinar outras mães a ganhar dinheiro sem ter que se matar tanto para colocar comida na panela para os filhos’. Nossa, aquele dia me deu um ódio, raiva, força, tudo junto. Conseguimos levar a carga, entramos cinco minutos antes de fechar o deposito e vendemos”, comenta.

A oração ficou no coração de Deby e hoje, além do trabalho de trancista, ela se preocupa em ajudar outras mulheres com história semelhante. Com 38 anos, mãe de Naomi Pereira Moura da Rocha, 14 anos, e Jamal Prince Pereira Laurindo, 6 anos, ela sabe o quão difícil é conciliar o cuidado com os filhos e o trabalho.

Foram durante essas trocas de experiências que Deby cruzou o caminho de Letícia Costa (ou vice-versa) e surgiu o Coletivo Mães Pretas. Conheça a história do movimento, em outra reportagem especial da Tribuna!