Uma cena curiosa chamou atenção de quem passava pelo Centro de Curitiba nesta quarta-feira (27). No meio dos andares apressados de quem precisava pegar o ônibus, um homem parecia distante de todo o agito da cidade. Vestido com um macacão cinza, ele amarrava e desamarrava uma corda grande continuamente. De vez em quando alguém passava e o cumprimentava. Ele respondia, sem deixar de fazer o trabalho que não parecia ter fim ou, sequer, objetivo.
Assim como as pessoas curiosas que assistiam à cena, você também deve estar se perguntando o motivo para a ação. E a resposta é simples: o homem estava trabalhando. Agora, se você estiver pensando que tipo de trabalho é esse que passa o dia todo fazendo e desfazendo nós em uma corda, saiba que pode ser o trabalho de muitos de nós.
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Buscando provocar uma reação de conscientização no público, a ação faz parte da performance chamada ‘Horário Comercial’, apresentada pelo Theatro Fúria e que está na programação da Mostra Fringe, do Festival de Curitiba. Na proposta, uma pessoa “trabalha amarrando e desamarrando nós em um cabo por oito horas, com um intervalo de uma hora de almoço, sem construir ou concretizar nada”. É isso que quem passou pela Rua Presidente Faria, perto da Praça Santos Andrade, conseguiu observar.
Interagindo com o público sem parar de fazer e desfazer os nós na corda, o artista Péricles Anarcos explica que um dos objetivos de Horário Comercial é chamar atenção para o tempo que se gasta no trabalho e o que, de fato, é possível aproveitar disso. “A performance é como se fosse uma lente de aumento em alguns fatores que o sistema normaliza pra gente. Por exemplo, aqui estou questionando o trabalho, o tempo que a gente gasta na plenitude da nossa vida fazendo as coisas que a gente faz e o por que a gente faz isso”, diz.
O artista conta que são nove horas de palco: oito horas fazendo o trabalho e uma hora de almoço. “A hora do almoço também deveria ser considerada no trabalho, porque você está preso nas funções. Não tem tempo de fazer nada. Você almoça, mas tá com a cabeça no trabalho. Tem muita coisa pra filosofar a respeito de como o sistema nos anestesia pra gente achar normal gastar os momentos mais plenos das nossas vidas fazendo coisas que será que são pra gente?”, questiona.
Curiosas, algumas pessoas paravam para assistir o ‘trabalho peculiar’ de Péricles. Já outras, provavelmente apressadas para chegar em algum compromisso, nem percebiam o amarrar e desamarrar contínuo da corda.
Analista de RH, Bianca Ribeiro estava a caminho do trabalho quando se deparou com a cena. Observando por cerca de três minutos, ela tentou decifrar o que estava acontecendo. “Eu acho que é uma performance artística, talvez seja do Festival de Teatro, não sei”.
Bianca ficou surpresa ao descobrir o objetivo. Ela acredita que é possível relacionar a cena com o trabalho. “Com certeza, coisas que a gente não precisava fazer ou poderia fazer de outra forma. [Durante] oito horas. Acho que hoje a hora que eu sair do trabalho ele ainda vai estar aqui”, comenta. Refletindo sobre a mensagem do artista, a analista de RH afirma que é importante buscar fazer o que “deixa a gente feliz”.
Vendendo pipoca ao lado de Péricles, Gustavo Henrique também imaginou que se tratava de uma performance. Ele já estava observando o trabalho de Péricles por cerca de duas horas.
“Querendo ou não, se a gente viver em função das pessoas a gente não completa nossos progressos de vida. Se for para esperar alguma coisa do próximo, estamos ferrados. Sim, têm pessoas boas, mas têm pessoas que não ligam, que não se importam com o outro lado”, reflete Gustavo.
Como as pessoas perceberam o trabalho do artista
Parte do público observava em silêncio, mas também havia pessoas que iam até Péricles perguntar o que ele estava fazendo. O artista afirmou que as abordagens estavam sendo respeitosas e que a performance estava sendo eficiente.
“Aqui em Curitiba tá sendo bem fácil de fazer. Tradicionalmente a gente faz essa performance no primeiro dia útil depois do Dia do Trabalhador e geralmente não tem ninguém gravando, não tem nada. Então muitas vezes as pessoas pensam que eu sou louco, muitas vezes eu sou desrespeitado”, revela.
Sentada há 15 minutos em um banco ao lado de Péricles, Ana Carolina estava com o filho pequeno e assistia curiosamente a apresentação, sem entender o que estava acontecendo. Quando descobriu o contexto, Ana concordou com a atividade.
“Igual meu esposo sempre fala: tem gente que foca muito no trabalho, trabalho e trabalho. Deixa a família de lado. Parece que só trabalha para ficar sendo mais rico e perde o tempo com essas coisas. É um tempo perdido. O ser humano se esforça tanto pra nada”, comenta. “Acho que vale a pena curtir os bons momentos, a família, para mim é isso”, acrescenta.
Acompanhada da filha, Jéssica Ferreira revela que tinha visto a performance de Péricles na televisão, mas não conseguiu escutar do que se tratava. “Imagino que tenha muitos trabalhos assim, ainda mais quando não tá feliz com aquilo que tá fazendo, é uma coisa que só faz e não ve o retorno. Não vale a pena”, diz ao saber a proposta.
Outras performances do Theatro Fúria
A Companhia Theatro Fúria é de Cuiabá e essa é a 6ª vez que participa do Festival de Curitiba. Além de Horário Comercial, os artistas vão realizar mais duas performances: Justiça dos Poderes a Mim Conferidos e Nó’Sapiens.
Péricles explica que a segunda trata de narrativas que o ser humano precisa se adaptar, como o capitalismo. “Sempre a gente está influenciado por certos formadores de opinião, digamos assim. A gente é treinado desde a infância a não acreditar muito na nossa originalidade e se adaptar às expectativas do sistema. É o emprego que você tem, o que você reza, as expectativas do capitalismo. Quando você é, digamos, obsoleto com o sistema, ai você se torna um maldito. Mas muitas vezes ser obsoleto é desenvolver sua plenitude, originalidade”.
Já Justiça dos Poderes a Mim Conferidos aborda sociedade e justiça.
Festival de Curitiba
O Festival de Curitiba começou na última segunda-feira (25) e vai até o dia 7 de abril. Essa é a 32ª edição do evento que reúne teatro, música, humor, dança, oficinas e shows. São mais de 300 atrações, incluindo estreias nacionais, espetáculos premiados e aclamados pelo público.
Dividido em Mostra Lucia Camargo, Mostra Fringe, Mostra Temporada de Musicais, Mostra Surda, MishMash, Risorama e Guritiba, o Festival de Curitiba reúne uma programação diversa voltada para todos os públicos. Algumas das atrações são gratuitas.