Se atualmente o Brasil é uma das maiores potências mundiais do skate, modalidade que se consolida inclusive no programa olímpico e será novamente disputada nos Jogos de Paris 2024, muito se deve aos pioneiros desse esporte que chegou ao país no início nos anos 1960. Essa história tem um capítulo importante, hoje quase esquecido, na tradicional Praça da Ucrânia, no bairro Bigorrilho, em Curitiba.
Registros históricos apontam que a pista da praça foi a primeira a receber o esporte criado por surfistas californianos em terras brasileiras, há 50 anos. Em 1974 – até então era mais comum que o esporte fosse praticado nas ruas e calçadas das grandes cidades, especialmente o Rio de Janeiro. A pista permanece até hoje na praça, atualmente escondida debaixo de um jardim nas proximidades da esquina das ruas Capitão Souza Franco e Padre Agostinho.
LEIA TAMBÉM:
>> Estrutura de carnaval vai bloquear rua no Centro de Curitiba e mudar rotas de ônibus
>> Inscrições para o concurso público do governo do Paraná abrem na segunda
A pista foi coberta em 1999, quando a prefeitura a desativou sob a alegação de que o barulho dos skates e da turma que se reunia no local incomodava os moradores dos prédios localizados na praça. Um ano antes, a pista havia passado por reformas que a deixaram mais propícia para a prática do esporte, já que foi originalmente projetada para a patinação – modalidade relativamente popular no final da década de 1960.
Adormecida sob a terra, a pista já tem data para deixar de existir, já que o projeto de revitalização da Praça da Ucrânia, que teve a ordem de serviço assinada pelo prefeito em exercício Eduardo Pimentel no último dia 26 de janeiro, prevê a remoção do que hoje é o atual jardim em um prazo de oito meses.
Movimento pela preservação
Ao menos dois movimentos paralelos que surgiram nos últimos anos defendem a importância histórica tanto da pista quanto de todo o projeto original da praça. Os movimentos pedem que a prefeitura revise os planos de intervenção profunda na estrutura do local.
Por meio de petições e páginas nas redes sociais, os movimentos defendem que a revitalização da praça siga o projeto original do renomado arquiteto José Maria Gandolfi, criado em 1965. Um dos criadores do curso de arquitetura da Universidade Federal do Paraná, Gandolfi tem entre suas obras o edifício-sede da Paraná Previdência e o ginásio Palácio de Cristal, o Círculo Militar do Paraná, em Curitiba, e o edifício-sede da Petrobras, no Rio de Janeiro.
Ele projetou a praça que homenageia o poeta ucraniano Taras Chevtchenki e a forte presença de imigrantes ucranianos em Curitiba. Inaugurada em 29 de outubro de 1967 pelo então prefeito Omar Sabbag, a Praça da Ucrânia se caracteriza pela presença de diversas estruturas circulares, inclusive a pista projetada para a patinação, e diversos desníveis. Características diversas das do projeto de revitalização, em que predominam as linhas retas e o piso totalmente nivelado.
Esse é um dos pontos questionados nas petições online que pedem o tombamento histórico da praça ou a realização de debates com a população para modificar o projeto aprovado pela prefeitura.
“A Praça da Ucrânia, localizada em Curitiba/PR, está prestes a passar por um processo de revitalização. Contudo, nesse processo, a prefeitura destrói a praça para criar uma nova área, um único corredor de passagem de pedestres.
Considerando que a praça da Ucrânia foi projetada em 1965 (com inauguração em 1967), pelo arquiteto José Maria Gandolfi, um dos maiores do país, vencedor de mais de 37 prêmios ao longo de sua carreira, bem como no local está localizada a primeira pista de skate do Brasil (hoje enterrada pela prefeitura).
Criamos esse abaixo-assinado para buscar o apoio da população para o tombamento do local, fazendo com que a reforma mantenha os traços originais do projeto”, afirma uma das petições.
“O projeto acaba com o caráter de ‘estada’ que a praça proporciona hoje: ao transformá-la em um grande corredor, a Prefeitura acaba com todos os espaços e núcleos de convivência da área, que justamente fazem com que ela seja uma praça acolhedora e que se mantém cheia em vários horários do dia e da noite.
O projeto retira todos os níveis da praça, deixando ela completamente reta: os níveis compõem estes núcleos de estada e garantem que você consiga observar e compartilhar a praça de diferentes maneiras. A parte mais alta, onde hoje está localizada a estátua, proporciona segurança com relação à rua para que as pessoas sentem e para que as crianças façam brincadeiras e troquem figurinhas em eventos importantes com distanciamento dos carros. É importante garantir a acessibilidade destas áreas, mas tirar todos os nivelamentos não é a única solução para isso”, diz a outra petição ativa.
Um dos organizadores do movimento pela revitalização da pista de skate da praça, o analista judiciário Luiz Fernando “Tocha” Toledo, iniciou essa campanha em 2022 junto com os amigos que fez nos tempos em que frequentava a pista.
“A gente nem sabia naquela época que essa era a primeira pista de skate do Brasil. Depois é que tivemos acesso a alguns documentos e entre eles estava o projeto original do José Maria Gandolfi. A partir daí nós solicitamos uma reunião com o setor que cuida de praças e parques na prefeitura, mas nessa reunião eles não deram muita importância para o nosso movimento. Ano passado eu fiz um vídeo contando a história da pista para reativar a nossa campanha e consegui uma boa repercussão. Mas em seguida a prefeitura apresentou esse projeto de revitalização e apressou o processo para começar logo as obras”, conta.
Abraço simbólico na praça
Devido ao impasse com a prefeitura e ao descontentamento com o projeto, que não teria sido devidamente debatido com os moradores, os defensores do projeto original da Praça da Ucrânia programaram para o dia 16 de fevereiro um abraço simbólico à praça, aproveitando a movimentação da tradicional feirinha gastronômica realizada às sextas-feiras no local para sensibilizar o maior número de pessoas possível.
“E agora que saiu a ordem de serviço estamos estudando algumas possibilidades para tentar reverter a situação. Uma delas é entrar com uma ação popular para impedir que a prefeitura descaracterize o projeto original da praça, que tem grande importância histórica”, complementa Tocha.
Para evitar transtornos aos moradores da região caso a pista fosse reaberta, ele sugere que se defina um horário de funcionamento para a prática esportiva.
“Em volta da praça tem três ruas muito movimentadas, com barulho de motos, carros, caminhões e ônibus. Os skates não fazem mais barulho do que esse movimento todo. E essa questão é muito simples de resolver, limitando o horário de abertura da pista, que ficaria fechada durante a noite”, conclui.
E aí, prefeitura?
A reportagem da Tribuna procurou a prefeitura de Curitiba para falar sobre o projeto de revitalização da praça, questionando se foram realizadas audiências públicas antes da apresentação do projeto, se as mudanças projetadas não descaracterizam o projeto original e se a importância histórica da pista foi levada em conta na elaboração do projeto que descarta a sua reabertura.
Confira as respostas da prefeitura na íntegra:
TRIBUNA: Foram realizadas audiências públicas para a apresentação do projeto de revitalização da Praça da Ucrânia? Em caso afirmativo, foram realizadas virtualmente ou presencialmente? E quantas audiências aconteceram?
PREFEITURA DE CURITIBA: Foi realizado no auditório da SMMA no dia 27/07/2023, reunião para apresentação do projeto de Revitalização da Praça Ucrânia. Estavam presentes moradores da região, representantes da regional da Matriz, representantes da Câmara Municipal de Curitiba, representantes de Conselhos Comunitários de Segurança (Consegs) da região, de feirantes e associações de moradores locais.
TRIBUNA: O projeto de reforma da Praça da Ucrânia altera significativamente o projeto original, que priorizava estruturas circulares e diversos relevos ao longo de toda a área da praça, substituindo tais características por um plano uniforme e sem formas circulares. Essa mudança tão profunda não representa uma descaracterização de uma obra histórica da cidade? A melhora da acessibilidade e a facilidade para o funcionamento da feira gastronômica das sextas-feiras foram os únicos pontos levados em conta para a elaboração do projeto de revitalização?
PREFEITURA DE CURITIBA: Pode-se dizer o projeto original da praça inaugurada em 1967 já está descaracterizado. Observamos que inicialmente era um espaço íntegro entre a rua Pe. Agostinho e a Rua Pe. Anchieta, apresentava amplos canteiros, espaços circulares de estar e canteiros, além de piso de cacão de pedra. A praça teve em 1997 a abertura de uma passagem de veículos para acesso à av. Cândido Hartmann, dividindo o logradouro em dois segmentos. Além disso, outras intervenções foram ocorrendo como implantação de bancas, diminuição dos canteiros e aumento da área pavimentada para circulação de pedestres, troca de pavimentação por petit pavê, instalação de feiras, entre outras. Podemos observar que ao longo do tempo os espaços urbanos sofrem com as novas demandas e usos na cidade.
O contexto urbano no qual está inserida a Praça Ucrânia é bastante complexo considerando que o espaço público do logradouro abriga muitas funções e atividades, além de estar localizada em área de grande fluxo de pedestres e veículos, junto à estação tubo “Praça Ucrânia”- Via do BRT Leste-Oeste, e próximo a um colégio com importante circulação de estudantes, tem grandes edifícios no seu entorno além de área comercial próxima, que contribuem para o aumento do fluxo de pedestres e veículos na região. As feiras se consolidaram na praça e atualmente representam uma importante atividade que ocorre no espaço. São 04 feiras abrigadas no local, administradas por órgãos diversos, sendo a feira gastronômica que ocorre às sexta-feiras à noite, a maior desse tipo na cidade com público de até 20.000 pessoas por mês.
Os critérios para o desenvolvimento da proposta consideraram os levantamentos realizados, as demandas apontadas pela população de melhorias em acessibilidade, segurança nas feiras (principalmente referente às instalações elétricas que atendam a atividade), as atividades das bancas existentes, a previsão de adequações da estação tubo na obra do BRT leste-oeste, a manutenção, melhoria e modernização dos espaços existentes (parquinho e estares), além do norteamento e cumprimento das normas e especificações técnicas. Isto posto, podemos ressaltar o grande desafio para a elaboração de uma proposta que contemplasse todas essas variáveis envolvidas. Outra preocupação foi a de promover e valorizar os elementos da cultura Ucraniana. O monumento do poeta Tarás Shevtchénko existente na praça foi valorizado prevendo a instalação em espaço acessível, amplo e em destaque. A consulta e pesquisa junto à Comunidade Ucraniana foi realizada no sentido de buscar elementos significativos à cultura daquele país. O bordado ucraniano foi o item escolhido e representado no espaço da praça através do piso da alameda principal, onde também se desenvolve o fluxo das feiras. O projeto visa soluções técnicas para atendimento das demandas e necessidades apontadas no diagnóstico realizado.
TRIBUNA: Especificamente em relação à pista de patinação/skate, os registros indicam que ela é a primeira pista de skate do Brasil, tendo assim uma importância histórica para a modalidade que atualmente é uma das mais praticadas pelos jovens brasileiros, além de ser um esporte em que o país integra um grupo seleto de potências olímpicas. A referida pista foi fechada em 1999 sob a alegação de que o ruído dos skates e das pessoas que frequentavam a pista incomodava os moradores, apesar da região da praça ter um movimento intenso de carros, caminhões e, principalmente, ônibus, inclusive os biarticulados. Essa importância histórica da pista foi levada em conta antes da decisão por sua retirada definitiva (atualmente ela permanece no local, embaixo de um jardim)? Em relação ao barulho, não seria possível estabelecer um horário de funcionamento, a exemplo do que acontece em outros parques e aparelhos públicos?
PREFEITURA DE CURITIBA: O projeto da praça originalmente contava com um espaço circular que foi concebido para ser utilizado como rinck de patinação, visto que o skate surgiu em Curitiba em meados da década de 70. Em 1999, por solicitação dos moradores do entorno da praça através de diversos abaixo-assinados, o rinck de patinação foi desativado. Neste tempo a praça já estava cercada por uma vizinhança composta por edifícios de apartamentos e os skatistas utilizavam o local. A queixa principal dos moradores, principalmente dos andares mais altos, era do ruído causado pelos skates que chegavam com mais potência quanto mais alto o andar. Essa descrição da situação daquela época é o que comprovam hoje em dia muitos estudos científicos: paredões de edifícios nas cidades, chamados de “cânions urbanos”, favorecem a propagação e a intensificação de sons. Nestes cânions ocorrem a reverberação das ondas sonoras e a amplificação dos sons provenientes das partes mais baixas, próximas ao solo. Estes fenômenos não são observados em áreas abertas, como era a situação inicial da praça. Complementando o histórico, antes da desativação do espaço e substituição dele por canteiro, ainda houve um esforço da municipalidade em tentar através de sinalização local um uso amistoso do espaço, solicitando a não utilização do local em horários noturnos em respeito ao sossego – no entanto essa medida não foi respeitada pelos usuários, levando a decisão de fechamento do espaço. Considerando a paisagem atual do entorno da praça (cânion urbano), considerando o bem estar das centenas dos cidadãos residentes no entorno, e que são diretamente atingidos pela situação, considerando o impacto da poluição sonora produzida pelo uso de skate e outros equipamentos esportivos de mesmo impacto sonoro, considerando que já faz 25 anos que houve a desativação do espaço, considerando a paisagem, os usos e demanda do espaço urbano atual entendemos que a praça não comporta tal equipamento.