População de rua

Passagens de volta pra casa para migrantes e desabrigados triplicam em Curitiba

Foto: Arquivo/Átila Alberti/Tribuna do Paraná

A quantidade de pessoas em situação de rua em Curitiba gera controvérsia. Não há dados oficiais confiáveis sobre a evolução desse cenário – para cima ou para baixo -, mas a percepção de comerciantes e especialistas é de aumento de pessoas usando espaços públicos como abrigo. De maneira contrastante, a capital paranaense defende que a situação vem sendo controlada.

Entre as saídas utilizadas pelo poder público para minimizar o drama social está o custeio do transporte de pessoas em trânsito – sem abrigo ou em vias de ficarem desabrigadas – de volta para suas cidades de origem. Em 2019, o volume de passagens bancadas por Curitiba praticamente triplicou. Segundo o presidente da Fundação de Ação Social (FAS), Thiago Ferro, foram 9.477 passagens compradas ano passado, uma média de 790 por mês.

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O valor é quase três vezes acima de 2018, quando foram adquiridas 3.464 passagens, média de 269 por mês, e quase quatro vezes o de 2017, quando foram concedidas cerca de 200 passagens por mês – 2.402 no total.

Os custos para bancar o serviço também cresceram, mas não na mesma proporção. Subiram de R$ 275 mil em 2017, para R$ 402 mil em 2018 e R$ 529,6 mil em 2019. “Com volume é possível negociar e conseguir um preço melhor”, diz Ferro, que deve manter a prática nos mesmos níveis ao longo deste ano. “Não posso afirmar que vou subir, porque já estou no limite [orçamentário]”, explica.

A questão é tratada pela Casa da Acolhida e do Regresso (CAR), unidade da FAS na rodoferroviária que atende pessoas necessitadas de abrigo temporário e/ou concessão de passagens para retorno ao município de origem. A concessão é feita somente para pessoas ou famílias em situação de vulnerabilidade, após entrevista e análise social, além do contato com familiares.

Segundo Ferro, em virtude do desemprego, muitas pessoas procuram Curitiba, mas parte não obtém sucesso. “Curitiba é a capital que mais emprega no Brasil, fora São Paulo. Muitos chegam com R$ 200, R$ 300, achando que é suficiente para começar uma nova vida, junto com a família, mas muitas vezes não é assim. Antes dessas pessoas caírem em situação de rua, temos feito abordagens e fornecido o regresso”, conta.

Percepção é de aumento

Apesar do serviço “preventivo” da prefeitura, para moradores e comerciantes da região central a percepção é do aumento de pessoas em situação de rua. “Percebemos que a miserabilidade cresceu, você não anda 100 metros sem ser abordado por alguém precisando de ajuda”, diz o presidente da Associação Comercial do Paraná (ACP), Camilo Turmina.

A sensação é compartilhada pelo antropólogo Tomás Melo, membro do Instituto Nacional de Direitos Humanos de População de Rua (INRua). “A impressão do aumento é explícita, mas não posso afirmar categoricamente, não existe pequisa. Melo cita duas pesquisas oficiais feitas em 2009 e 2015, que contabilizaram 2,7 mil e 1,7 mil pessoas em situação de rua, respectivamente. “A grosso modo, olho nu, esse número aumentou imensamente [entre as pequisas], mas não quer dizer que a última pesquisa seja furada, pois foram feitas com diferentes metologias”.

Os últimos levantamentos desse público têm como base os atendimentos realizados pela FAS e os dados do Cadastro Único (CadÚnico), do Ministério do Desenvolvimento Social (MDS), que o governo federal usa para registrar e identificar as famílias brasileiras de baixa renda e a população mais vulnerável. Essa “matrícula” é a porta de entrada para dezenas de programas sociais do governo federal, como o Bolsa Família e o Benefício de Prestação Continuada (BPC), e também utilizado para inferência e definição de políticas públicas para pessoas em situação de rua na capital paranaense. A autodeclaração é feita por meio de abordagens da FAS ou espontaneamente nos Centros de Referência da Assistência Social (CRAS).

Pelo CadÚnico, Curitiba começou 2020 rompendo a barreira de 2,5 mil pessoas em situação de rua. Os dados de janeiro representam um crescimento de 29,8% em relação a janeiro de 2019 (1.912) ou 59,2% no período de dois anos (1.558). Em sete anos, o crescimento ultrapassa os 550% – eram 379 em janeiro de 2013. Para a série histórica, o MDS utiliza a classificação “famílias em situação de rua” e não pessoas, mas a diferença é mínima: 2.481 e 2.500, respectivamente, no caso do dado mais recente.

O presidente da FAS diz que o número real da população de rua fica abaixo disso, entre 1,8 mil e 2 mil. “O [número] é rotativo. Na época do Natal, por exemplo, tivemos o caso específico de 274 índios em Curitiba. Eles vieram nas férias escolares dos filhos para vender seus produtos artesanais, buscando alguma doação, mas boa parte já foi embora”. Ferro também cita exemplo do início do mês, de 150 pessoas que estavam a caminho da colheita da maçã, em Santa Catarina e Rio Grande do Sul. “Eram trabalhadores que reconheciam a cidade como referência de bom serviço social, até com expectativa de conseguir passagem, mas não fazemos isso. Quem deseja voltar para casa, São Paulo, Acre, seja onde for, pagamos, mas nesse caso não”.

Para alteração do CadÚnico, no caso de migrantes, é preciso que a pessoa refaça o procedimento quando chegar em uma nova cidade. Do contrário, permanece registrada na localidade na qual realizou o cadastro.

“Uma das características da população de rua é ser flutuante, sazonal. Mas da mesma forma que alguém tenha cadastro em Curitiba e não esteja mais aqui, outro pode ter cadastro em outra cidade e está aqui, fora os não cadastrados”, diz Melo. “A única forma de resolver essa questão [de mensurar a população de rua] é uma política sistemática que preveja a produção continuada de pesquisas com a mesma metodologia, para termos um quadro histórico que permita essa verificação. Saber de fato, e não ficar no achismo”, completa.

Uma emenda coletiva de oito vereadores aprovada junto com a Lei Orçamentária Anual (LOA) de 2020 destina R$ 345 mil ao Instituto de Pesquisa e Planejamento Urbano de Curitiba (Ippuc) para realização de pesquisa sobre pessoas em situação de rua. Quem mais contribuiu foram as vereadoras Professora Josete (PT, R$ 150 mil) e Maria Letícia (PV, R$ 100 mil), além de Herivelto Oliveira (Cidadania, R$ 50 mil).

Aposta para reduzir o problema

Segundo Ferro, 95% dos moradores de rua da capital hoje são pessoas que perderam o vínculo familiar por causa da dependência química, independentemente do motivo que os levaram a essa situação. O objetivo, portanto, visa tirar as pessoas dessa situação.

“Temos fortalecido muito as comunidades terapêuticas e o grupo de trabalho entre secretarias com soluções coletivas. Atualmente são 150 pessoas em vagas voluntárias e sociais ofertadas para a FAS [nas comunidades]. Em mais 20, 30 dias deve sair um edital com 40 vagas para acolher especialmente dependentes químicos”, afirma Ferro.

Para o Melo, o serviço é digno e muitas vezes salva vidas, mas o problema central é de habitação. “A moradia é a porta de entrada para a reorganização da vida como um todo. Muitos passam por comunidades terapêuticas, ficam 3, 6, 9 meses e acabam voltando para rua com as mesmas dificuldades”, explica.

Segundo ele, o sistema de serviço social praticado no país está ultrapassado. “A situação de rua é definida como um problema passageiro, mas ele não se estabelece dessa forma, é contínuo e tem se agravado a nível mundial. Em alguns casos esse cuidado terá que ser permanente. Países como Portugal, Finlândia e Canadá adotaram outras estratégias [pelo viés da moradia] e têm mostrado bons resultados. Portugal reduziu [a população de rua] pela metade em um ano”, diz.

O presidente da ACP, que representa um dos grupos mais prejudicados pela situação, diz que a sociedade precisa se unir para enfrentar a questão. “Não existe comércio onde tem degradação urbana. E a população de rua compõe esse ambiente. As autoridades precisam se entender e nós, a sociedade civil, precisa sentar junto para debater e tomar uma solução. Não podemos perder nossa cidade, espaços, a vida urbana”, finaliza Turmina.

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