O aumento no número de moradores em situação de rua em Curitiba é inegável, mas o perfil de quem mora nas travessas, nas avenidas e mesmo em pontos turísticos da capital está se alterando. São pessoas com algum estudo e opiniões, sobrevivendo debaixo de marquises de lojas, contando com o apoio de entidades ou voluntários que preferem olhar com atenção aqueles que para muitos da sociedade não passam de encosto ou invisíveis.
Com base no Cadastro Único do Ministério do Desenvolvimento Social, a prefeitura de Curitiba estima que quase 2 mil pessoas estão vivendo nesta situação na cidade. No entanto, quem passeia pela capital ou trabalha na região central, acredita que esse número possa ser até três vezes maior.
Ao circular pelas principais praças de Curitiba como a Tiradentes, Rui Barbosa e Generoso Marques, no horário comercial, é fácil notar alguns grupos, principalmente formados por homens entre 30 e 59 anos de idade. Segundo a prefeitura, apenas 8% das pessoas em situação de rua são mulheres.
Há uma espécie de código de conduta ou regras a seguir entre os que vivem nas ruas. Uma das principais recomendações é evitar perguntas que de alguma forma possa prejudicar o ambiente ou trazer problemas. Questionamentos sobre o que fez da vida, se tem família e qual motivo levou a estar na rua são considerados proibidos.
João Guilherme de Andrade, 32 anos, estudou até a quarta série. Está nas ruas faz três anos e tem o desejo de reencontrar a mãe que mora no bairro Tatuquara, em Curitiba. Segundo ele, a luta por morar nas ruas é diária, mas o pior está dentro dele. “Todos têm suas lutas, mas eu não controlo a minha. Quando tento me levantar, eu não consigo. Sou um fraco. Meu maior medo é de perder a minha mãe antes de eu estar bem. Quando olho as famílias em um domingo passeando por aqui, é muito difícil”, disse João Guilherme, que preferiu não informar o que fez antes de estar na praça Tiradentes ou se tem algum tipo de dependência química.
Questionado sobre a forma que a sociedade visualiza os moradores em situação de rua, João Guilherme relatou que já nem fica chateado se alguém não dá atenção quando ele pede ajuda. “Eu mesmo não ligo para os outros que ignoram a gente, pois temos aqui uma união. Quando estamos tomando chuva ou frio, sempre tem alguém que dá a mão. É a força de Deus que nos cobre. Só não julgue, temos problemas como qualquer outra pessoa”, salientou o rapaz que minutos depois da entrevista para a Tribuna do Paraná passou por uma revista da Guarda Municipal (GM) juntamente com outros moradores de rua. Todos foram liberados na sequencia após denúncia que no local estava ocorrendo algum tipo de crime relacionado ao tráfico de drogas.
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Santa Catarina e São Paulo
Ao conversar com os moradores em situação de rua e buscar informações da vida de cada um deles, grande parte relatou que vieram de outros locais, como Santa Catarina, norte do Paraná e São Paulo. Ao questionar o motivo de vir para Curitiba, a cidade tem a fama de ter uma população que ajuda quem está pedindo nas praças ou sinaleiros.
“Eu morava em Itapema, em Santa Catarina e ouvia falar bem de Curitiba. As pessoas sempre dão alimentação e meus cachorros estão gordos de tanta ração”, disse um senhor com aparência de 50 anos que pediu para não ter o nome nem imagem divulgada. Aliás, foto é algo que também entra como proibitivo, pois demonstram certa vergonha ou evitam algum problema com a Justiça.
Quanto a essa ação de doar alimentos nas esquinas ou mesmo das iniciativas de Organizações não Governamentais (ONGs), não é muito bem vista pela prefeitura de Curitiba. Em abril desse ano, a prefeitura reformulou o projeto de lei sobre a distribuição de alimentos que previa multa a quem distribuísse comida sem autorização da prefeitura. A principal alegação é o município tem programas de auxílio como o Mesa Solidária, além dos cinco restaurantes populares, defendeu na época o prefeito Rafael Greca (DEM).
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Abordagens e acolhimentos
Diariamente, equipes do Centro de Referência Especializado de Assistência Social (CREAS) atuam no atendimento às pessoas em situação de vulnerabilidade social. Na diligência aos locais em que está sendo solicitado atendimento, os agentes orientam e ofertam a pessoa, um atendimento na rede de serviços do município, principalmente à da Assistência Social. São nos chamados lares de convivência que são realizados os acolhimentos.
Em 2021, de janeiro a setembro, foram realizadas 27.939 abordagens, um número inferior comparado a 2020, quando 42.579 pessoas tiveram acompanhamento em uma diligência. Segundo a Fundação de Ação Social (FAS), isso ocorreu devido ao aumento no volume de acolhimentos que passou para 191.809 atendimentos, quase 89 mil a mais que no ano anterior que teve 103.329. A explicação para este fenômeno foi a pandemia da Covid-19 que levou tanta gente para um novo lar.
Anderson Cristian Walter, 47 anos, coordenador de Média Complexidade da Diretoria de Atenção à População em Situação de Rua, acredita que o perfil mudou comparado as últimas décadas e que as pessoas estão buscando mais o apoio devido as complicações do coronavírus.
“Nós temos um púbico de quase 2 mil pessoas, e trabalhamos na perspectiva educativa de convencimento e estabelecendo vínculos. A pessoa em situação de rua, era muitas das vezes doentes, com estigma de expulsão da família e ligada a dependência química. Hoje em dia, o sobrevivente das ruas é uma questão sócio econômica, que não tem condições de residir em uma casa e precisam de doações. Quanto melhor o país com emprego, renda, menos pessoas estarão na rua”, comentou Anderson que é formado em gestão pública e trabalha há 18 anos no setor.
Aliás, o coordenador não esquece e se emociona ao lembrar de atitudes que salvaram vidas nesse período trabalhado. “Salvar Vidas é um compromisso. Uma vez, era inverno e entrei no mato lá no Butiatuvinha. Avistei uma pessoa que estava entrando em hipotermia, estava congelado. Ele foi atendido posteriormente e uma simples decisão foi fundamental. Isso me emociona, ele agradeceu e falou que fui um anjo que apareceu na vida dele”, chorou Anderson.
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Do hotel 5 estrelas para as ruas
Natural de Londrina, no norte do Paraná, Eduardo Santos Bergamo, 54 anos, morou um ano e meio na Rua XV, ponto turístico de Curitiba. A vida de Eduardo é daquelas de filme, em que saiu de casa para estudar, ganhou fama, perdeu tudo e que agora está buscando dar a volta por cima.
Aos 17 anos saiu do interior e veio estudar Administração na capital. Se encantou com a gastronomia, fez curso em uma escola tradicional e foi trabalhar como chef de cozinha em hotéis da rede Bourbon e Paraná Golf. Gerenciou o setor de alimentos e bebidas, mas a depressão tirou o foco. “Eu tenho uma depressão profunda e minha geração nunca acreditou na doença. Eu tentava consertar isso com o álcool e isso me afastou. Aí um dia, dormi bem e acordei sem movimento nos braços e pernas. Fui para a cadeira de rodas e decidi ir para as ruas. Entreguei apartamento e larguei o trabalho”, recorda Eduardo.
Ao deixar a comodidade de uma residência e o status de trabalhador, o ex chef de cozinha sofreu preconceitos. Decidiu ficar em um ponto considerado ‘seguro”, na Rua XV, ao lado da Galeria Ritz, onde o movimento é constante e cercado de câmeras de segurança. “Digo que montei um escritório ali. Eu entendo as pessoas e também tenho aversão quando visualizava gente dormindo em frente de loja com lixo e fazendo as necessidades em local impróprio. Eu recebi ajuda e só aceitei o recolhimento após falarem que o meu cachorro (Juli) estaria comigo. O cachorro esteve comigo no pior momento, e eu não a abandonaria quando estivesse melhor. Sem chance”, disse Eduardo que mora na Unidade de Acolhimento no bairro Sítio Cercado e largou a cadeira de roda após abandonar o álcool.
Regras e trabalho voluntário
Na Unidade de Acolhimento no bairro Sítio Cercado, onde a reportagem da Tribuna do Paraná esteve presente. São cinco dormitórios, duas salas de televisão, banheiros, refeitório, banheiros biblioteca e horta. Nas paredes, desenhos realizados no papel A4 decoram o ambiente e os acolhidos podem desenhar temas livres ou específicos como flores da Primavera. Atualmente, são 1.328 vagas de acolhimento, em 27 unidades, sendo 217 para mulheres em três lugares diferentes.
Nas casas de acolhimento, algumas regras são necessárias. Horários de banho, refeição e remédios precisam ser respeitados, e claro, nada de bebida alcoólica. “É a principal reclamação é a falta de álcool. Muitos não entendem isso, aqui não estamos presos e posso ir embora a qualquer momento”, completou Eduardo que espera retornar para as ruas como professor de gastronomia.