Em tempos de pandemia da Covid-19, passear no Centro de Curitiba é motivo para relembrar bons momentos da infância e aproveitar para ouvir histórias de um tempo que não volta, mas que deixou um legado para a cidade. Caminhar atualmente na Rua XV de Novembro, um dos principais pontos do comércio da capital, deixa a sensação que vários empreendimentos fecharam as portas devido à crise provocada pela doença, que vitimou 6.809 pessoas, segundo boletim mais recente.
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E não se trata apenas de uma impressão. Muitas portas se fecharam e o calçadão de pedras portuguesas (o nosso petit pavê) foi tomado por vendedores ambulantes. Por exemplo, aqueles jovens que atravessam a tua de ponta a ponta com caixas térmicas vendendo chocolate? Estão em todos os lugares. Confesso que fica chato receber tantas investidas, mas talvez seja só o meu lado curitibano falando mais alto.
A ideia da reportagem era encontrar o comércio que está resistindo a mais tempo (especialmente nessa crise). Curitiba tem várias lojas que tem mais de 50 anos de fundação e quem nem pensam em fechar as portas para os clientes. Antes de lista-las, porém, vale contar um pouquinho de história.
Segundo a Câmara Municipal de Curitiba, o comércio curitibano surgiu no século XVIII. Um dos mais antigos é de julho de 1736. A Câmara notificou os “mercadores e taberneiros” para que eles fizessem uma espécie de “matrícula” no juízo da ouvidoria geral da Comarca de Curitiba, visando o pagamento de impostos (o “quinto real”) e a concessão de suas licenças de funcionamento. Todos os comerciantes se registraram. Eram oito no total.
Depois surgiu um outro registro, do dia 27 de fevereiro de 1802, informando que os “vendeiros” da Vila Nossa Senhora da Luz dos Pinhais de Curitiba teriam que apresentar suas licenças à Câmara Municipal. Aos que não obtiveram licença até o final do último semestre foram impostas condenações.
Em julho de 1824, por meio de edital, a Câmara ordenava a população para “ninguém vender arroz, laranjas e bananas sem ser na rua, mercado ou nas “cazinhas”. As cazinhas foram o primeiro conceito de mercado público de Curitiba e estavam situadas nas proximidades da catedral, onde hoje é a atual rua Saldanha Marinho.
Naturalmente ao longo do tempo, muitas coisas se transformaram. O horário de funcionamento do comércio foi alterado com a criação da Rua 24 Horas, por exemplo. A venda por telefone era novidade nas décadas de 1980, mas hoje as vendas online viraram realidade (e até salvação) para muitos.
Apesar da modernidade, as lojas mais antigas de Curitiba seguem atendendo da mesma forma cordial, atenciosa e muitas das vezes utilizando-se disso, do lado afetivo, como sua principal estratégia de venda. A reportagem da Tribuna do Paraná visitou alguns estabelecimentos que merecem destaque nesta lista. Bora lá voltar ao passado?
Casa Edith
A Casa Edith, uma das mais antigas lojas em atividade em Curitiba, é simplesmente um retorno para a infância. Ao entrar na loja, percebe-se que não adianta ter pressa, pois o chão é todo de madeira e revestido pela história. A vitrine inclui chapéus, cartolas, suspensórios, gravatas-borboletas, bengalas e ceroulas. Aliás, é o produto mais vendido e pode ser encontrado a R$5.
A loja fica localizada na Praça Generoso Marques, um casarão de estilo neoclássico, construído em 1879, e tombado pelo Patrimônio Histórico. O início de vendas começou em 1917, quando o libanês Kalil Karam abriu o comércio, utilizando o nome da sua primeira filha, Edith. A loja matriz, fechada na década de 1930, funcionava na Praça Tiradentes, onde é hoje a Pernambucanas. Em 1925, Kalil inaugurou a filial no casarão azul que resiste até hoje.
A partir de 1949, com o falecimento de Kalil, a loja passou a ser administrada por seus oito herdeiros, até que, em 1961, o imigrante romeno Virgil Trifan comprou a loja. Aliás, Virgil também era proprietário da Casa Globo (fundada em 1954 na Rua Candido Xavier), que depois ficou localizada em frente à Casa Edith. A Casa Globo existiu até 1983, quando o grande imóvel deu espaço a fundação do shopping Mounif Tacla.
Eduardo Trifan, neto de Virgil, reforça que a Casa Edith não perdeu a essência ao longo do tempo, mas pretende utilizar ferramentas mais modernas de vendas. “Estamos buscando atualizar a loja frente ao cenário atual, visando aumentar os canais de vendas e comunicação, com a implementação de vendas on-line, comunicação e divulgação pelas mídias sociais. Em breve teremos novidades, porém, sem perdermos a essência da loja em relação ao portfólio de produtos e aos clientes fidelizados”, frisou Eduardo, filho de Simone Trifan, uma das responsáveis da atual administração da loja.
Casa do Fumo
O comércio foi criado em 1956 pelo descendente de alemães Fritz Meissner. Atualmente, a loja é gerenciada por um antigo funcionário. João Alves Antunes, 64 anos, começou como office-boy em 1972 e, em 1983, depois de ter aberto a própria tabacaria em outro ponto da cidade, acabou comprando a loja do antigo patrão. Tem a companhia da esposa Madalena Machado, que apoiou a ideia desde o princípio.
Dentro da loja verde ( antes era amarela), na Rua Saldanha Marinho, uma verdadeira coletânea de produtos relacionados ao fumo, artesanatos, lembrancinhas, imagens de santos, velas, peças em gesso e vasos. “ Eu transformei muito a loja tirando produtos de umbanda. O nome é muito tradicional e certa vez, um fornecedor achou estranho vender tinta para uma casa de fumo. O nome marca muito, mas vendemos artesanato. Pensamos em mudar o nome, mas seguimos pela tradição. A gente recebe gente que comenta que foi ali com o avô ou com o pai. Faz parte da história da família a Casa do Fumo”, orgulha-se Antunes.
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Casa Glaser
Nascido na Bohemia, Áustria, em 10 de agosto de 1864, o imigrante Wenceslau Glaser chegou ao Brasil em 1870 e, em 4 de janeiro de 1887, fundou o Armazém Glaser na Rua Comendador Araújo com a Visconde do Rio Branco, a loja mais antiga em atividade no Paraná.
Inicialmente, era uma loja de secos e molhados que entregava os produtos nas casas dos clientes e cobrava de todos no fim de cada mês. Na época, além de alimentos, a loja também vendia vidros, cristais, porcelanas e artigos de pintura importados da Áustria. Mais tarde, em 1914, a Casa Glaser foi demolida para dar lugar ao edifício neoclássico. Aliás, o imóvel, construído pela família em 1914, é tombado e mantém as características originais. Em 2001, inicia a construção do Centro Empresarial Glaser, obra com 15 mil metros quadrados.
Hoje é administrada pela quarta geração da família Glaser e a quinta está sendo preparada para assumir no futuro. Bianca Glaser, 44 anos, com o auxílio do pai Mário Fernando Glaser, tem a missão de levar o nome da família adiante. “Ano que vem iremos completar 135 anos de fundação e minhas duas filhas, ou seja, a quinta geração já estão na ativa. Usamos os ensinamentos de não desistir. Meu pai fala sempre que passamos por várias crises e não vai ser esta da pandemia que vai nos derrubar. Tivemos que nos adaptar com as vendas online e mesmo levando os produtos para a casa dos clientes com toda a segurança. É o amor de se fazer algo que gosta e esse é o nosso segredo”, confidenciou Bianca.
Casa Bandeirantes
Fundada em 1943 pelo libanês Jorge Derviche, a loja começou vendendo de brinquedos a enxovais, mas passou a vender armarinhos. Situação na Praça Generoso Marques, o estabelecimento foi pioneiro do ramo na cidade com artigos para costura como zíperes, fios, elásticos, rendas, fitas, botões, colchetes, velcros, cadarços, entretela, agulhas, alfinetes e fitilhos.
Hoje, a casa é gerenciada pelo neto do fundador, Felipe Derviche, de 43 anos. Há 20 anos no balcão, o segredo da longevidade está relacionado a história da família. “Sem dúvida o lado sentimental que veio do trabalho do meu avô e do pai conta muito. Estamos passando por um momento difícil, sem dúvida, a pior das três gerações. A nossa história é de batalha e luta, pois é complicado ser um pequeno empresário no país”, ressaltou Felipe que divide porta com o tio Paulo Augusto, da loja Bandeirantes Tradicional.
Lojas do Pedro
Cravada na Rua Voluntários da Pátria, a Lojas do Pedro é quase uma marca registrada quando o assunto é o comércio da capital. São 64 anos de tradição completados em abril com utensílios domésticos que estão presentes na vida de diferentes gerações de curitibanos.
Em 1957, ex-combatente da Força Expedicionária Brasileira, Eclidio Pedro Hecke, então com 38 anos fundou a loja apostando na variedade e qualidade de seus produtos. Na época, a população dizia: “Não encontrou, vai na Lojas do Pedro, lá tem! ”.
Com moral e sucesso, a Lojas do Pedro chegou a contar com cinco unidades em Curitiba, um sonho realizado pelo fundador ao deixar uma loja para cada um dos cinco filhos. Com o passar dos anos e a aposentadoria dos herdeiros, as lojas começaram a encerrar suas atividades a partir da década de 1990, com exceção da localizada na Voluntários da Pátria, que continua em plena atividade.
João Haupt Papelaria
A história da papelaria é espetacular. Em dezembro de 1875, nascia João Haupt, na cidade de Sternberg, Moravia (hoje República Tcheca). Em 1893, a família chega ao Brasil, desembarcando em Porto Alegre, mas por pouco tempo permanece por lá, vindo morar em Curitiba.
Em 1915, ao lado de Francisco Juksch, é fundada a firma João Haupt & Cia, uma das pioneiras na época a oferecer serviços de livraria e papelaria, prestando serviços a Universidade Federal do Paraná. João faleceu em 1962, aos 87 anos. Atualmente a empresa a que João Haupt deu início é conduzida pelo bisneto Joao César de 60 anos. “Sigo no ramo muito pelo lado familiar e da história. O perfil dos clientes pouco mudou”, comentou o bisneto.
A João Haupt Papelaria está localizada na Barão do Cerro Azul desde o principio, entre a Travessa Nestor de Castro e a entrada da Praça Tiradentes. A segunda loja fica na Rua Lamenha Lins, no bairro Rebouças.
Loja Coelho
Em um tempo onde a concentração do comércio de Curitiba se restringia à Rua XV de Novembro e às Praças Tiradentes e Generoso Marques, um rapaz de 33 anos decidiu criar uma loja especializada em roupas e acessórios masculinos na Rua Senador Alencar Guimarães, nas cercanias da Praça Osório. Em 1957, Carlos da Costa Coelho, mais conhecido como Seu Coelho, definiu que o cliente seria tratado como amigo e não consumidor.
Mantida em funcionamento exatamente da mesma maneira há 64 anos, a Loja Coelho é um convite a uma espécie de museu. Gravatas, chapéus, calçados, lenços, roupas, bengalas e outros acessórios masculinos deixam o visitante em outro século. Seu Coelho morreu em 2014, aos 90 anos, mas deixou uma história que segue viva até os tempos atuais. Antônio Carlos da Costa Coelho, 67 anos, filho do fundador, administra o “templo masculino do vestuário” há sete anos. “ A manutenção da qualidade dos produtos, o atendimento e fidelidade dos clientes são os nossos segredos. Não criamos dificuldades para quem nos procura”, disse Antônio.
Com 64 anos de vida, a loja tem muitas histórias, inclusive com artistas. Em uma oportunidade, o famoso ator Anthony Quinn precisou de um chapéu de veludo em 1998 para filmar cenas do filme Oriundi. “Meu pai gostava muito de cinema e ele admirava o Anthony Quinn. Um dia tocou o telefone e o secretário do Quinn, o convidou para que meu pai o conhecesse. Estava frio e ele foi com um chapéu de veludo e ele gostou. Pediu emprestado e claro que o pai cedeu. Para nossa surpresa, o Anthony Quinn veio na loja devolver o chapéu”, relembra o filho do Seu Coelho.