Do jardim de casa, a advogada Isabel Kugler Mendes, 84, fala com a leveza de quem cumpriu seu dever. Em 27 de maio, ela deixou a presidência do Conselho da Comunidade de Curitiba -órgão de fiscalização do sistema penitenciário organizado pela sociedade civil com apoio do Tribunal de Justiça do Paraná-, colocando fim a uma trajetória de 50 anos em defesa dos direitos humanos, sempre de forma voluntária.
Ao longo desse período, a ativista fiscalizou presídios e delegacias, intermediou o fim de rebeliões, atuou na reinserção social de presos e defendeu o direito de detentos – dos “pés de chinelo” aos figurões da Lava Jato. Não à toa, ganhou o apelido de “mãe dos presos”.
Isabel se aproximou dos presídios no início dos anos 1970. Seu marido na época, o major da Polícia Militar José Justiniano Dias Paredes -que viria a se tornar coronel- foi nomeado diretor da Colônia Penal Agrícola, na região metropolitana de Curitiba.
Ela e seus filhos passaram a frequentar a unidade prisional e a conviver com os presos na horta e em outras atividades. Ao perceber que os detentos tinham necessidades básicas, mobilizou seus colegas do curso de direito para arrecadar sabão de coco e passou a defender comida de melhor qualidade para eles.
Quando o marido dirigiu o presídio do Ahú, a ativista conseguiu que desativassem um banheiro para transformá-lo em biblioteca. O acervo era composto de livros que arrecadava. Também convenceu o marido a permitir que fizesse uma comida especial no Natal, incluindo sobremesa.
“Eu aprendi a respeitar as pessoas sem me importar com o que elas estavam pagando à sociedade. Independentemente da dívida que tem com a sociedade, o preso é um cidadão. Tem direito a uma cama decente, a um prato de comida digno, a estudar e a aprender a uma profissão, para que saia como cidadão capaz de viver dignamente”, diz a advogada.
A partir dali, Isabel passou a militar voluntariamente e de forma mais organizada em diversas entidades – da Cruzada Social Cosme e Damião ao Conselho Municipal da Condição Feminina de Curitiba. Mas passou a ser reconhecida por sua atuação junto ao sistema penitenciário.
De 2004 a 2013, fez parte da comissão de direitos humanos da OAB (Ordem dos Advogados do Brasil). Em seguida, passou a presidir o Conselho da Comunidade. Nesses anos, não houve uma rebelião em penitenciárias de Curitiba e região metropolitana que não tenha contado com a interlocução de Isabel.
“Os próprios presos ou os diretores me ligavam. A negociações só começavam quando eu chegava. Depois que eu entrava, nunca tinha um refém ferido. Eu ficava com eles [os presos] até o fim. Às vezes, atravessamos a madrugada. Eu nunca me cansei.”
Em outras ocasiões, Isabel conseguiu agir preventivamente e evitar os motins. Recebia ligações dos presos, que contavam articulações para “virar a cadeia”. A ativista ia à penitenciária e pedia para ouvir presos, indicados em uma lista -entre os quais, estavam líderes do PCC (Primeiro Comando da Capital). Quase sempre, as reclamações eram sobre excessos cometidos atrás das grades.
“Eu falava: ‘Não vira. Espera. Vamos tentar resolver’. E negociava com o Estado”, disse Isabel. “Quando tinha rebelião, as direções falavam que era briga de facções. Como briga se só tinha uma facção? Era tudo por tortura, superlotação, falta de trabalho.”
Em março de 2015, Isabel recebeu uma ligação do diretor do Complexo Médico Penal (CMP), presídio na região de metropolitana de Curitiba que, semanas antes, tinha começado a receber presos da Operação Lava Jato, entre políticos, empresários e diretores da Petrobras.
“Ele me pediu pra ir lá, porque um dos ‘Lava Jato’ tinha tentado suicídio”, contou. Desde então, a ativista passou a frequentar o CMP duas vezes por semana, tornando-se próxima dos “figurões” -de José Dirceu a Marcelo Odebrecht, de Luiz Argôlo a Fernando Baiano. “Todos eles me tratavam com muito carinho”, diz a advogada.
Marcelo Odebrecht chegou a tirar dinheiro do bolso em diversas ocasiões para melhorar as condições do CMP. Doou 300 pares de tênis ao Conselho da Comunidade, que foram repassados aos presos. Em outra ocasião, comprou duas máquinas de lavar roupas industriais que custaram R$ 190 mil.
Mesmo quando progrediu ao regime semiaberto, Odebrecht continuou em contato com Isabel e ajudando a custear a festa de fim de ano que o Conselho promove nos 11 presídios de sua jurisdição. “Até ter começado essas brigas entre eles [a família Odebrecht], o Marcelo sempre ajudava, me atendia”, disse a ativista.
Isabel também destaca a inteligência de José Dirceu, que atuou como bibliotecário do CMP. Ela também acompanhou o petista, que escreveu suas memórias durante o período em que esteve preso na unidade.
“Ele revolucionou a biblioteca, catalogando livro por livro. Nesse último aniversário dele, liguei para dar parabéns”, contou.
Com Luiz Argôlo, ex-deputado federal pela Bahia, a ativista estabeleceu uma relação que define como sendo de mãe. “Uma vez por mês, a irmã dele vinha para fazer visita e ficava [hospedada] na minha casa”, revelou.
Mãe de nove filhos -seis “do ventre” e três “de coração”, segundo ela-, Isabel quer dedicar a aposentadoria a escrever suas memórias e a publicar oito livros que tem prontos: quatro de temática espírita e quatro com crônicas e histórias pessoais.
Sua ausência parece já ser sentida pelos presos. Não raro, diz ela, recebe ligações dos presidiários e seus familiares em seu telefone pessoal. E promete se manter por perto: “Saí, mas se tiver rebelião ou se precisarem de alguma coisa, vou estar por aqui”.