Era por volta de nove da noite de segunda-feira (24) quando Edson Luiz de Souza, 59, correu até a kombi da FAS (Fundação de Ação Social de Curitiba) procurando atendimento. Já fazia algum tempo que ele buscava uma vaga em um dos centros terapêuticos da capital, mas a suspeita de infecção pelo coronavírus adiou os planos. Mostrou então o exame atestando que não estava com Covid-19, datado do mesmo dia, e seguiu para o acolhimento.
“Estou cansado da rua, já rodei o Brasil, o pessoal que tá na calçada se torna invisível. Trazem o cachorrinho para mijar do nosso lado, recolhem o cocô, mas não nos dão nada”, desabafou.
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A fome, somada ao frio, que naquela noite chegou a 3,8°C, menor temperatura do ano na cidade, foi o incentivo a mais para tentar traçar um novo caminho longe das ruas, pelas quais dormia desde 2004.
Nem todos optam pelos centros de acolhimento, cujas equipes intensificam as abordagens nos dias mais gélidos. Em duas horas de trabalho, ele foi o primeiro a aceitar a ajuda do grupo de ação social acompanhado pela reportagem.
“Fiquei 15 minutos no abrigo e arrumei três brigas”, justificou Jeferson Bahr, 37, que está há um ano vivendo pelo centro de Curitiba depois que perdeu o emprego como pintor de prédios.
Da venda de recicláveis e CDs piratas, ele diz conseguir renda para dormir algumas noites em hotéis da região, mas, na maior parte das vezes, o crack é o subterfúgio para afastar o frio. “Se você tá usando droga, você nem vê. Quando percebe, já tá amanhecendo.”
Assim como Jeferson, ao menos 200 pessoas permanecem nas ruas de Curitiba mesmo nos dias mais frios, em que o fluxo de atendimento da FAS aumenta cerca de 30%. O número é somado às 1.600 vagas dos centros de acolhimento e hotéis sociais e considerado pela entidade como a população total nessa situação na capital.
Na segunda-feira, 976 pessoas foram abrigadas pela prefeitura.
De acordo com o presidente da instituição, Fabiano Vilaruel, houve um acréscimo de 15% a 20% nos números nos primeiros meses da pandemia, principalmente com a fuga de moradores de outros centros urbanos, em especial de São Paulo.
“Foi perceptível o aumento no meio do ano passado, alguns vinham até com o endereço da FAS na mão, mas esse número foi se diluindo e se assentando, muitos foram embora, e hoje percebemos que o aumento não é tão significativo a ponto de colapsar o sistema”, afirmou.
Segundo ele, entre todos os registros de atendimento da FAS, foram contabilizadas cinco mortes por Covid-19 até agora, cerca de 0,3% do total considerado pela prefeitura.
O representante comercial Ernani Luiz Bindo, que coordena o projeto Aquecendo Corações Curitiba, diz que a demanda por comida aumentou consideravelmente no último ano. Ele chegou a servir 7.000 refeições por mês no pico da pandemia. Agora, são cerca de 4.000.
“Mas não atendemos só pessoas em situação de rua, a gente recebe muitos desempregados, pessoas de idade, com baixa renda, venezuelanos e alguns argentinos”, detalhou.
Segundo Bindo, nas temporadas de comércio fechado, a procura também aumenta, já que poucas pessoas circulam pelo centro, diminuindo o fluxo de doações.
O padre redentorista Joaquim Parron, que há anos atende principalmente catadores de materiais recicláveis na Vila Torres, na periferia da capital, teve que pedir mais donativos para atender a demanda, que dobrou no último ano e hoje atinge cerca de 2.000 famílias.
“Fala-se muito sobre a situação do Norte, Nordeste, mas hoje é dramática a situação em Curitiba”, afirmou.
Vilaruel aponta que, apesar de a percepção geral ser de que há mais pessoas nas ruas, muitos dos informais, que vendem balas ou se apresentam em semáforos, por exemplo, não chegam a ser atendidos pela FAS, pois geralmente já possuem um local para dormir.
“Há um público que está na rua por outros interesses. Nossa prioridade são as pessoas que estão em situação de abandono, com transtornos mentais, problemas com drogas e álcool, ou que romperam os vínculos familiares e foram para a rua”, apontou.
É a situação que vive Eziel de Oliveira, 47, desde que seus pais morreram, há sete anos. “Abandonei tudo na vida, mas gosto de viver assim”, afirmou. Abordado pela equipe da FAS, ele recusou abrigo. Vestindo três jaquetas e três calças para enfrentar o frio da madrugada, ele garantiu o jantar numa churrascaria dos arredores, cujo dono o auxilia de vez em quando.
“Quando a pessoa consegue comida e doações para sobreviver, ela acaba não indo para o abrigo, pois já está acostumada, e não quer seguir certas regras dos centros, onde não se pode entrar com álcool ou drogas, por exemplo”, explicou a educadora Vanessa Resquetti, supervisora da Regional Matriz, que concentra 68% da população de rua de Curitiba.
Há um ano, a FAS ampliou a rede com a contratação de um hotel, em que o acolhido consegue maior autonomia para ir e vir. “Assim, na busca por emprego, ele também pode informar o endereço de um hotel, já que infelizmente ainda existe um preconceito muito grande quando a pessoa informa que fica em um abrigo da prefeitura”, apontou o presidente da entidade.
É uma dessas vagas que busca Elington Batista dos Santos, 28, que desde os 18 está nas ruas. “Sempre frequentei o albergue [abrigo da FAS], mas agora tá diferente, tem uma rapaziada nova que não vou muito com a cara”, disse.
Caso seja encaminhado para o hotel, que nesta segunda tinha apenas duas vagas, Santos terá mais liberdade, mas continuará sendo acompanhado pelas equipes que oferecem tratamento e cursos para requalificação profissional. “São geralmente pessoas numa condição de estabilização e que precisam de um espaço para recomeçar as vidas”, contou Vilaruel.