Os argumentos para a cassação do vereador Renato Freitas (PT), de Curitiba, por participação em ato político que terminou na invasão de uma igreja católica, são frágeis e não sustentam a punição máxima, avaliam especialistas da USP (Universidade de São Paulo) e da UFPR (Universidade Federal do Paraná) ouvidos pela reportagem.
Já representantes da OAB (Ordem dos Advogados do Brasil) do Paraná ponderam que o conceito de quebra de decoro “é abstrato” e que a decisão final será da Câmara.
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O embate legal se baseia no regimento interno e no relatório do Conselho de Ética, que pede a cassação de Freitas por quebra de decoro parlamentar por perturbar o culto e liderar o protesto. O ato lembrava a morte de dois negros congolenses no Rio de Janeiro. A votação em plenário foi suspensa pelo Tribunal de Justiça do Paraná.
O episódio ocorreu em fevereiro, em frente à Igreja do Rosário. Segundo a arquidiocese, a missa foi abreviada pelo ato. O padre se mostrou incomodado pelo barulho e fiéis reclamaram, fechando a porta principal.
Os manifestantes, então, entraram pelas portas laterais com bandeiras de partidos políticos e gritaram palavras de ordem. Ainda conforme a arquidiocese, ocorreram “excessos, como desrespeito pelo lugar sagrado”. Renato teria sido apontado como um dos líderes do ato, o que a defesa nega, alegando que não houve invasão porque a missa já teria terminado.
Segundo o professor da Faculdade de Direito da USP Elival Ramos, especialista em Direito Constitucional, a Constituição Federal aponta situações para perda de mandato, como abuso de prerrogativa, percepção indevida de vantagem ou condenação em processos criminais.
A quebra de decoro está prevista no artigo 10º do regimento interno, que cita exemplos graves para cassação, como porte de arma de fogo em plenário e assédio sexual. “O regimento só autoriza a perda de mandato em casos graves” e em sua tipificação não há “nenhuma que coubesse claramente [no caso Freitas]”, afirmou Ramos.
Entrar num ambiente religioso para manifestação política, avalia o docente, pode ser entendido como abuso de prerrogativa, ainda assim não seria suficiente para cassação, mas para suspensão de prerrogativas regimentais.
“Ele deveria sofrer sanção mais branda pois a cassação não é cabível, tem que haver a proporcionalidade entre infração e punição e, neste caso, a desproporção é enorme. Acredito que o plenário corrija isso pois se não corrigir o judiciário corrigirá anulando o excesso de punição”, disse o docente.
Na análise do presidente da Comissão de Direito Eleitoral da OAB/PR, Leandro Rosa, o conceito de quebra de decoro “é muito abstrato, fluído, permitindo que vários tipos de prática sejam considerados”.
A questão, avalia Rosa, é saber se há intensidade suficiente para ofender o decoro parlamentar. “Quem tem autoridade para decidir isso são os vereadores, (…) o Poder Judiciário só tem competência para interferir quando as regras de condução do processo não são respeitadas.”
Na Câmara de Curitiba, por exemplo, houve dois casos polêmicos, um por assédio sexual e outro por rachadinha, no qual houve condenação criminal, mas os parlamentares não foram cassados.
Doutora em Direito Constitucional e professora da UFPR (Universidade Federal do Paraná), Vera Chueiri sustenta que a acusação não justifica perda de mandato. “Não vejo abuso legal, pelo contrário. Há clara perseguição pois Renato dá visibilidade a abusos contra negros, como violência policial.”
Segundo ela, o protesto teve reivindicação justa e a igreja é um lugar público. “Não houve invasão nem violência, considerando as provas de que a própria igreja e o padre já se manifestaram que não seria o caso de cassação.”
O padre é Luiz Hass, pároco da igreja onde aconteceu o protesto. Ele esteve em recente manifestação a favor de Freitas. Num vídeo gravado durante o ato, ele diz que foi prestar solidariedade e promover diálogo e reconciliação. “Levem em consideração isso, senhores vereadores, para que nós possamos viver como irmãos.”
Hass não foi encontrado pela reportagem para comentar sua participação. Procurada, a Arquidiocese de Curitiba informou que não vai se manifestar.
Em ofício enviado aos vereadores, em março, a igreja confirmou que a missa foi abreviada com o ato, mas que já havia sido encerrada quando os manifestantes entraram.
No texto, pediu “medida disciplinar proporcional”, sugerindo que se evitem “motivações politizadas e, inclusive, não se adote punição máxima”. A igreja reconheceu que a causa contra o racismo “é nobre e merece respeito”.
Na defesa, o advogado Guilherme Gonçalves afirma que houve parcialidade, antecipação de voto e o envio de um email racista durante a tramitação com “ausência de fundamentação apta a justificar a conclusão”, o que derrubou provas produzidas nos autos e estaria em desacordo com previsões regimentais da Casa.
Segundo recurso apresentado ao Tribunal de Justiça do Paraná, a cassação tem motivação política e o julgamento do Conselho foi parcial, “ao contrário do que asseguram os regramentos constitucionais, internacionais e regimentais”, o que configuraria “ofensa ao princípio do devido processo legal e importa na nulidade do processo”.
O advogado afirma que o próprio relatório descartou a invasão da igreja. “Os vídeos provam que o culto terminou, com a bênção do padre e os avisos finais. Só depois os manifestantes entraram. A Câmara violou as próprias recomendações legais. Não há prova testemunhal, mas política. É uma clara manifestação de racismo estrutural.”
A contestação foi parcialmente deferida pelo TJ-PR, que suspendeu a sessão de cassação até que sindicância interna da Câmara explicasse o e-mail de cunho racista recebido por Freitas, supostamente enviado pelo relator do processo, o vereador Sidnei Toaldo (Patriota).
A investigação apresentou parecer no dia seguinte, apontando que o e-mail foi forjado e não partiu de Toaldo. Com isso, o Legislativo apresentou recurso ao tribunal para votar a cassação. O processo segue na 4ª Câmara Cível e aguarda recurso de ambas as partes.