Em 20 anos como intensivista, o médico Marcelo Oliveira, 49 anos, se acostumou à pressão do trabalho. Mas, nunca nem ele, nem a equipe que coordena na UTI no Hospital Evangélico Mackenzie ficaram tão desgastados quanto na pandemia de coronavírus.
Em especial agora, com o novo avanço da covid-19 em Curitiba, em que as equipes de saúde estão cansadas de nove meses de trabalho excessivo, mas em que as 45 vagas de UTI de coronavírus do Evangélico seguem completamente lotadas há dias. “O desgaste agora a cada plantão é bem maior porque são pacientes muito graves, o que não permite que a equipe pare um minuto”, enfatiza o médico.
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Oliveira diz que fica triste cada vez que vê na TV imagens de aglomerações na cidade, porque sabe que a probabilidade de algumas dessas pessoas ou mesmo seus familiares precisarem de atendimento de UTI é grande. “As pessoas estão vendo da seguinte forma: ‘se a doença não atingiu a mim e ninguém da minha família em oito, nove meses, não vai atingir mais’, o que é totalmente errado”, lamenta.
“Presenciar uma pessoa saindo sem vida do hospital, dentro de um saco, é algo muito ruim e tem marcado muito a gente nessa situação toda”, lamenta o coordenador de UTI do Evangélico Mackenzie.
Leia a entrevista a seguir:
Qual a situação da UTI do Hospital Evangélico Mackenzie neste momento?
Os 45 leitos de Covid-19 ficam praticamente lotados. A grande dificuldade é que a quantidade de profissionais nunca é suficiente para a carga de trabalho, porque alguns acabam se afastando, até pela doença. Tivemos uma folga nos atendimentos um mês atrás, com leitos vazios, mas na última semana a demanda cresceu muito.
A situação agora é pior do que no meio do ano?
Em julho, começo de agosto esteve pior. Agora, nós temos um entendimento melhor da doença, mas o estresse está grande porque o pessoal está cansado de nove meses de trabalho intenso e o número de profissionais é reduzido, o que sobrecarrega a equipe. Nessa última semana a UTI ficou lotada.
Com tanto trabalho, como está sua rotina pessoal?
Eu coordeno e faço plantão no Evangélico e também faço plantão no Hospital de Clínicas. A carga horária é tão grande quanto seria antes da pandemia, mas o desgaste agora no plantão é bem maior. São pacientes muito graves, então a equipe não para um minuto. Muitas vezes são 12 horas, 15 horas ininterruptas de trabalho sem intervalo. No começo, eu chegava a ficar 12 horas sem tomar água, mas aprendi que a gente não deve fazer isso com o nosso próprio corpo. A UTI sempre foi um ambiente controlado: o paciente entrava, a gente sabia o que está acontecendo, previa o que ia acontecer e atuava. Só que agora, pela quantidade de pacientes muito graves, você não para um minuto.
O senhor e sua equipe têm conseguido tirar folga?
Logicamente que ninguém fica 24 horas, sete dias por semana [sem folga], mas são folgas de 12 horas. Cansei de ficar 36 horas, 48 horas trabalhando direto. Então, muitas vezes, o tempo com a família é muito menor do que se fosse em outra situação. Nesta especialidade, de intensivista, a gente sempre trabalha muito, com carga horária bastante grande. E o médico muitas vezes acaba trabalhando mais para manter o padrão de vida. Mas agora não é mais que eu queira fazer um plantão extra para ganhar uma remuneração a mais. Agora nós estamos trabalhando a mais porque a sociedade precisa. Não tem como abrir mão.
A sobrecarga da enfermagem, por exemplo, é muito maior do que a nossa. O enfermeiro faz várias intervenções, entra em contato com o paciente várias vezes. Nós, médicos, vemos o paciente, examinamos, orientamos, mexemos nos equipamentos, mas quem faz a medicação, a higiene, cuida, é a enfermagem. Este trabalho à beira do leito é muito grande. E todo o serviço da UTI – os médicos, a enfermagem, a fisioterapia – ninguém para. UTI é feita no detalhe, não dá para deixar passar nada.
Diante de tanta sobrecarga de trabalho na UTI, qual é o sentimento do senhor quando vê imagens de aglomerações em bares e baladas?
É de tristeza pelas pessoas que vão ser acometidas pela doença e pelos familiares dessas pessoas que também vão pegar a doença. Acho que a ignorância acaba reinando. E vale lembrar que no pico do meio do ano nem todos hospitais particulares lotaram, agora todos lotaram. Então talvez seja aquela galera que no começo da pandemia estava assustada, que usava a hashtag #ficaemcasa e que agora está cansada da reclusão, de toda a mudança no hábito de vida. É um sentimento de que a gente não tem como atuar além da conscientização.
A maioria das pessoas vê da seguinte forma: ‘se a doença não atingiu a mim e ninguém da minha família em oito, nove meses, não vai atingir mais’, o que é errado. Fora o total descaso mesmo, falta conscientização nas pessoas. Os mais jovens não conseguem avaliar e colocar numa balança os riscos. Veem só o quanto estão cansados, o quanto querem sair, somente o eu. É o egoísmo próprio do ser humano. As pessoas não entendem que mesmo saudáveis e jovens elas estão internando em UTI. Acham que, por serem jovens e saudáveis, a doença não vai atingi-los e nisso levam a Covid para casa, para o ambiente familiar, que é onde as pessoas realmente se contaminam. O sentimento é de tristeza por conta do ser humano ainda agir assim.
A maior parte dos infectados agora é de jovens que afrontaram a doença?
Muitas vezes são também pessoas que precisam trabalhar, que precisam sair de casa e acabam se contaminando no transporte público ou no próprio ambiente de trabalho. Mas muitos infectados são sim de gente nos bares, na rua, sem máscara. E as medidas preventivas são simples, usar álcool, não levar a mão ao rosto se não estiver limpa, usar máscara. São medidas simples que se todos respeitassem não haveria essa consequência que estamos tendo. Aglomeração é matemático: quanto mais gente, maior risco de contaminação. E quanto mais gente se contaminar, mais gente vai para o hospital, mais gente vai ficar grave e precisar de UTI.
O senhor teve colegas de equipe contaminados ou que perderam a vida?
Próximos que perderam a vida, não. A gente teve um colega da enfermagem que morreu aqui no hospital, nós que atendemos. Alguns aqui no Evangélico e no Hospital de Clínicas, onde também trabalho, se infectaram e isso é impactante. A maioria saiu viva, mas tivemos sim óbitos de colegas da enfermagem, da recepção e isso é bem impactante.
No seu momento de folga, diante de uma situação dessa de tanto trabalho, presenciando tanta coisa triste, dá para desligar e descansar de fato?
É difícil, até porque é algo que está sendo tão forte na sociedade toda. Consigo separar um pouco minha atuação, aquilo que faço sob efeito da adrenalina. A família é a grande base que me dá essa estrutura. Tenho duas filhas pequenas, minha esposa também é médica. Em casa não falo muito disso, porque é muita tristeza. E também tento não demonstrar isso para minhas filhas e esposa. Então quando não estou trabalhando me apego à família, vou dar uma volta de moto para aliviar. Mas em casa a gente também acaba estudando mais, vendo literatura nova para se atualizar, ver o que de novo pode ser posto em prática no trabalho. A cabeça na verdade não para.
O que mais preocupa os profissionais de saúde dentro de uma UTI de Covid-19?
Desde o começo da pandemia como líder da equipe tenho duas preocupações. Uma é com o material de proteção, para que ninguém da minha equipe se contamine e leve a doença para casa. A outra é a cabeça das pessoas, a saúde mental de quem trabalha comigo. Eu sabia que desde o começo o que mais faria diferença era a cabeça das pessoas.
Como tem sido comunicar tantos familiares de que seus entes estão em estado grave ou mesmo que morreram?
O contato com familiares está sendo difícil, porque não é pessoalmente, é por telefone, e aí não tem a linguagem não verbal para você saber a reação do outro lado. Você fala e não sabe se a pessoa está entendendo direito a situação e geralmente não entende nada, a gente tem que explicar mais. E muitas vezes esse familiar também está isolado, sabendo que o caso de quem está internado é grave, que pode morrer. Isso cria uma angústia, principalmente quando a gente tem que falar com o pai ou a mãe de um jovem. Eu como pai me coloco no lugar dessas pessoas e sinto o sofrimento. Normalmente a família fica na UTI, participa de decisões no tratamento, mas agora não dá. A família está totalmente fora da UTI pelo risco de contágio, o que causou uma certa desumanização nesse contato, uma coisa que incomoda. Às vezes, quando chego em casa, tudo isso fica na minha cabeça. Fora a situação de a pessoa ir a óbito, sair sem vida do hospital, dentro de um saco, que é algo muito ruim e tem marcado muito a gente nessa situação toda.
Como não deixar o ânimo de uma equipe de UTI cair diante de uma situação tão triste como está sendo na pandemia?
É difícil. Mas a proatividade está à frente do processo. O importante é sempre dar um feedback positivo para a equipe. Tanto de quem a gente consegue salvar, de tudo o que a gente faz certo para que todos se sintam bem em ter feito um bom trabalho, de que deram o máximo que puderam e que isso vai passar e nos fortalecer. Eu sempre quero que todos da minha equipe vão para casa sabendo que, do ponto de vista técnico, fizeram o melhor, independente do que acontecer. A gente está fazendo o que a UTI sempre se propôs: dar vida às pessoas, devolver as pessoas às suas famílias, à sociedade. Tentamos ter um ambiente de trabalho o mais leve na medida possível, assim como qualquer outro trabalho. Só que por mais que seja normal o atendimento de pacientes graves numa UTI, a quantidade de mortes neste momento impacta. Nunca morreu tanta gente em tão pouco tempo nas UTIs.