Dando continuidade à proposta apresentada no último artigo, passa-se a abordar os critérios para a valoração da primeira circunstância judicial elencada pelo caput do art. 59, do Código Penal: a culpabilidade.
Da culpabilidade do sentenciado
A culpabilidade aparece no Direito Penal brasileiro como limitador à responsabilização criminal. Somente será censurado o indivíduo que praticar um injusto penal, possuindo a capacidade – ainda que genérica – de querer e de entender e a possibilidade de, nas circunstâncias do momento, agir de outra forma (lícita). Mais do que isso: a pena a ele aplicada ficará limitada ao grau de sua culpabilidade.
Assim, em um primeiro momento, depara-se o magistrado criminal com a verificação da ocorrência dos elementos da culpabilidade, para concluir se houve ou não prática delitiva. Após, quando da dosimetria da pena, necessita, mais uma vez, recorrer ao exame da culpabilidade, agora, como circunstância judicial. Dessa vez, a análise da culpabilidade exige maior esforço do julgador: não se trata mais de um estudo de constatação (haja vista já ter restado evidente, in casu, a sua presença) e, sim, de um exame de valoração, de graduação.
Portanto, deve o juiz, nessa oportunidade, dimensionar a culpabilidade pelo grau de intensidade da reprovação penal, expondo sempre os fundamentos que lhe formaram o convencimento(1).
A graduação da reprovação da conduta sancionada pode auferir-se a partir de dois dos elementos da culpabilidade: o potencial conhecimento da ilicitude e a exigibilidade de conduta diversa. Exclui-se a análise do grau de imputabilidade, pois, quando reduzido, implicará a incidência de causa de diminuição da pena (art. 26, parágrafo único, do Código Penal), cujo cômputo dar-se-á na terceira etapa da dosimetria.
Já, quanto à análise da consciência ou do potencial conhecimento da ilicitude, impende destacar a ressalva de que, se o agente estiver prejudicado por um erro de proibição evitável (artigo 21, in fine, do Código Penal), este será sopesado somente na terceira etapa dosimétrica por constituir causa de diminuição(2). Nos demais casos, pode-se avaliar o grau de maior ou menor consciência ou potencial conhecimento do ilícito pelo agente, no caso concreto.
Ademais, o magistrado, na valoração da culpabilidade, deve dispensar especial atenção à verificação do maior ou menor grau de exigibilidade de outra conduta, considerando, neste tocante, as características pessoais do agente dentro do exato contexto de circunstâncias fáticas em que o crime ocorreu. Este é, sem dúvida, o melhor critério de exame da intensidade de reprovação do crime(3). Quanto mais exigível a conduta diversa, maior é a reprovação do agir do sentenciado.
Para alguns, a apreciação da “intensidade do dolo” ou do “grau de culpa”, expressões utilizadas na redação antiga da lei, seria plenamente cabível por constituírem ambos indicativos da censurabilidade da conduta sancionada(4).
Existe, ainda, o entendimento de que a culpabilidade não é critério para medir o juízo de reprovação e, sim, é o próprio juízo de reprovação. Defensor dessa corrente, o Professor Juarez Cirino dos Santos(5), percebe que: “a inclusão da culpabilidade como elemento de orientação na formulação do juízo de reprovação (medido pela pena) representa uma impropriedade metodológica: constitui a conclusão do processo analítico fundado na metodologia jurídica do crime”
O magistrado paranaense Gilberto Ferreira(6) reforça essa opinião, afirmando que o legislador deveria ter estabelecido que, para se determinar o grau de culpabilidade, examinar-se-iam os antecedentes, conduta social e personalidade do agente; os motivos, circunstâncias e conseqüências do crime e o comportamento da vítima, deixando que tais elementos indicassem o quanto mais ou menos culpável seria o agente.
Cezar Bitencourt(7) alerta para o grave e bastante freqüente desacerto dos magistrados ao analisarem a circunstância judicial da culpabilidade afirmando que: “o agente agiu com culpabilidade, pois tinha a consciência da ilicitude do que fazia”. Ora, se o agente não tivesse agido com culpabilidade não teria sido condenado; ou, da mesma forma, se não tivesse a consciência da ilicitude do que fazia. É errado, portanto, na dosimetria da pena, repetir-se o juízo de constatação da culpabilidade e de seus elementos. De igual forma, não se pode fundamentar o exame da culpabilidade na alegação de que o acusado tenha agido de forma livre e consciente, pois: “o fato de o acusado ter agido livre e conscientemente não pode fundamentar a exasperação da pena-base, pois, se a ação não fosse consciente e deliberada, inexistiria dolo”(8).
Cumpre relevar, ainda, que o exame da graduação da culpabilidade é trabalho complexo, sendo, por conseguinte, inadmissíveis “as afirmações monossilábicas que encontramos em algumas sentenças, do tipo `a culpabilidade é mínima’, ou `grave’, `intensa’, etc”(9)
Cabe registrar, também, a proibição ao Juiz de que avalie a culpabilidade como desfavorável com o(s) mesmo(s) fundamento(s) que alicerçará a análise negativa de outra(s) das sete circunstâncias seguintes. Tal incidência caracterizaria, sem dúvida, violação ao princípio “non bis in idem”, que proíbe a consideração de uma mesma situação, por mais de uma vez, para o agravamento da pena que está sendo aplicada.
De igual modo, é vedado ao juiz que considere, na valoração da culpabilidade (e das demais circunstâncias judiciais) fatores que constituam ou qualifiquem o crime, ou, ainda, que caracterizem circunstância agravante ou causa especial de aumento de pena (a serem sopesadas nas etapas subseqüentes).
Assim sendo, não pode ser considerado elevado o grau de culpabilidade, por exemplo, no delito de estelionato, pelo fato de “o agente ter agido de má-fé, sem importar-se com seu semelhante que sofreu o prejuízo”, porque a má-fé do agente e o prejuízo (e a indiferença para com a vítima, por conseguinte) são circunstâncias que já constituem o próprio delito e que, portanto, já estão devidamente “sancionadas” pela pena abstrata, ainda que no mínimo legal.
Às vezes, a circunstância que se quer analisar não está expressa de forma “escancarada” no tipo penal. É preciso, neste tocante, fazer uma interpretação mais apurada do tipo e de suas freqüentes circunstâncias, para não incorrer em erro. Dessa forma, em se tratando da prática de crime de omissão de recolhimento de contribuições previdenciárias: “a condição de empresário revelada pelo acusado não pode acentuar a sua culpabilidade, exigindo-lhe maior consciência da ilicitude de sua conduta e fundamentando a exasperação da pena-base, tendo em vista que, no crime em exame, a responsabilidade normalmente recai sobre empresários. Nem mesmo o fato de centralizar as decisões da empresa pode ser considerada desfavorável, pois consiste em pressuposto para o reconhecimento da própria autoria delitiva”(10)
No mesmo entendimento equivocado encontram-se os que fundamentam a culpabilidade como “elevada” ao agente, em razão da “reiteração criminosa”, quando, a seguir, aumentam a pena pela continuidade delitiva (art. 71, do CP). Esquecem-se de que “os atos delituosos de prolongarem no tempo, configurando a continuidade delitiva, não podem ser considerados também nas circunstâncias do art. 59, sob pena de incidir-se em `bis in idem'”(11) Nesses casos, só se deve considerar o aumento do art. 71 do CP, pois “a continuação dimensiona a reiteração”(12).
Notas:
(1) David Teixeira de Azevedo, Dosimetria da Pena, São Paulo: Malheiros, 1998, p. 79.
(2) Fernando Galvão, Aplicação da Pena, Belo Horizonte: Del Rey, 1995, p. 143.
(3) Fernando Galvão, Aplicação da Pena, cit., p. 144.
(4) Julio Fabbrini Mirabete, Manual de Direito Penal, 1.º vol., 19.ª ed., São Paulo: Atlas, 2003, p.293 e Cezar Roberto Bitencourt, Tratado de Direito Penal, Parte Geral, 8.ª ed., São Paulo: Saraiva, 2003, p. 554.
(5) Juarez Cirino dos Santos, Direito Penal, p. 239, apud Gilberto Ferreira, Aplicação da Pena, Rio de Janeiro: Forense, 1995, p. 82.
(6) Gilberto Ferreira, Aplicação da Pena, cit., p. 82.
(7) Cezar Roberto Bitencourt, Tratado de Direito Penal, Parte Geral, cit., p.553.
(8) TRF da 4.ª Região, 7.ª Turma: Apelação Criminal n.º 2001.04.01.068867-9/RS, Rel. Des. Federal Fábio Rosa, DJU 08/05/2002 e Apelação Criminal n.º 2001.04.01.056394-9/RS, Rel. Des. Fed. Fábio Rosa, DJU 06/03/2002
(9) José Antonio Paganella Boschi, Das Penas e Seus Critérios de Aplicação, Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2000, p.205.
(10) TRF da 4.ª Região, 7.ª Turma: Apelação Criminal n.º 2002.04.01.008567-9/RS, Rel. Des. Federal Fábio Rosa, DJU 03/07/2002.
(11) TRF da 4.ª Região, 1.ª Turma: Apelação Criminal n.º 1999.04.01.030687-7/SC, Rel. Juiz Federal Guilherme Beltrami, DJU 12/07/2000 e Apelação Criminal n.º 96.04.00855-2/RS, Rel. Des. Federal José Luiz Germano da Silva, DJU 04/04/2001.
(12) STJ, 6.ª Turma: Recurso Especial n.º 11517/MG, Rel. Min. Vicente Cernicchiaro, DJU 30/09/1991.
Juliana de Andrade Colle
é advogada criminalista, professora de Direito Penal na Faculdade de Direito de Curitiba e no Curso Jurídico (julianacolle@onda.com.br).