O maior problema, hoje, relacionado com o princípio da insignificância não é tanto o pertinente à sua admissibilidade (até doutrinadores e julgadores mais conservadores já começam a reconhecê-lo), senão a confusão que ainda reina na esfera dos seus limites e, nesse sentido, por conseguinte, a falta de uma clara distinção (sobretudo dogmática) entre o princípio da insignificância (que exclui a tipicidade, como causa supralegal ? STJ, REsp 308.307, rel. Min. Laurita Vaz, j. 18.03.04) e o da irrelevância penal do fato (que tem por fundamento o art. 59 do CP, tornando-se a pena desnecessária no caso concreto, tal como ocorre com o perdão judicial).
Dessa distinção ainda não cuidou o legislador nem tampouco com precisão indiscutível a doutrina brasileira. Daí se infere a natural confusão que a jurisprudência vem espelhando nessa área. Dois julgados recentes, cuidando do mesmo delito (descaminho), demonstram o que acaba de ser dito:
(a) "… para o reconhecimento do aludido corolário (princípio da insignificância) não se deve considerar tão-somente a lesividade mínima da conduta do agente, sendo necessário apreciar outras circunstâncias de cunho subjetivo, especialmente àquelas relacionadas à vida pregressa e ao comportamento social do sujeito ativo, não sendo possível absolvê-lo da imputação descrita na inicial acusatória, se é reincidente, portador de maus antecedentes ou, como na espécie ocorre, reiteradamente pratica o questionado ilícito como ocupação" (STJ, HC 33.655-RS, rel. Min. Laurita Vaz, j. 01.06.04).
(b) "A lesividade da conduta, no delito de descaminho, deve ser tomada em relação ao valor do tributo incidente sobre as mercadorias apreendidas. Circunstâncias de caráter eminentemente subjetivo tais como reincidência, maus antecedentes e, também, o fato de haver processos em curso visando à apuração da mesma prática delituosa, não interferem na aplicação do princípio da insignificância, pois este está estritamente relacionado com o bem jurídico tutelado e com o tipo de injusto. Writ concedido" (STJ, HC 34.641-RS, rel. Min. Felix Fischer, j. 15.06.04).
A linha jurisprudencial mais correta (a última) reconhece o princípio da insignificância levando em conta (unicamente) o desvalor do resultado ou o desvalor da ação, é dizer, é suficiente (para a atipicidade) que o nível da lesão (ao bem jurídico) ou do perigo concreto verificado seja ínfimo ou ainda que a conduta do agente não tenha tido relevância "penal" (séria) para a produção do resultado. Cuidando, ao contrário, de ataque intolerável ou de conduta relevante o fato é típico (e, portanto, punível).
Há uma outra corrente jurisprudencial (cada vez mais recorrente) que, para o reconhecimento da infração bagatelar, não se contenta só com o desvalor do resultado ou da ação, acentuando, ademais, a imprescindibilidade de outras exigências: o fato é penalmente irrelevante quando são insignificantes (cumulativamente) não só o desvalor do resultado, senão também o desvalor da ação bem como o desvalor da culpabilidade do agente (isto é: quando todas as circunstâncias judiciais – culpabilidade, antecedentes, conduta social, personalidade, motivos do crime, conseqüências, circunstâncias etc. – sejam favoráveis).
A confusão está aqui: os critérios que orientam o princípio da insignificância são somente os do desvalor do resultado e do desvalor da conduta (e nada mais). Não se pode mesclar os critérios fundantes de cada princípio, sob pena de se incorrer em grave confusão (que não se coaduna com a boa técnica). O injusto penal é constituído de desvalor do resultado e desvalor da ação. A insignificância correlaciona-se, indubitavelmente, com o âmbito do injusto penal. Logo, não entram aqui critérios subjetivos típicos da reprovação da conduta (ou da necessidade da pena).
Não há dúvida que não podemos conceber que o autor de um fato insignificante fique totalmente impune. Alguma sanção ele pode ter que experimentar (tudo depende do caso concreto): sanção moral, civil, trabalhista, quando o caso, pagamento de multas etc.. Só não se justifica, evidentemente, a incidência do Direito penal que, em face das drásticas conseqüências que resultam à vida do condenado, deve ser reservado para fatos igualmente graves, relevantes.
Toda referência que é feita (na esfera do princípio da insignificância) ao desvalor da culpabilidade (réu com bons antecedentes, motivação do crime, personalidade do agente etc.) está confundindo o injusto penal com sua reprovação, leia-se, está confundindo a teoria do delito com a teoria da pena (ou, na linguagem de Graf Zu Dohna, o objeto de valoração com a valoração do objeto). Não se pode utilizar um critério típico do princípio da irrelevância penal do fato (teoria da pena) dentro do princípio da insignificância (que reside na teoria do delito). Essa é a confusão que precisa ser desfeita o mais pronto possível, para que o Direito penal não seja aplicado incorretamente (ou mesmo arbitrariamente).
Luiz Flávio Gomes é doutor em Direito penal pela Faculdade de Direito da Universidade Complutense de Madri, mestre em Direito penal pela USP, secretário-geral do IPAN (Instituto Pan-americano de Política Criminal), consultor e parecerista e diretor-presidente da TV Educativa IELF (1.ª Rede de Ensino Jurídico Telepresencial da América Latina com cursos ao vivo em SP e transmissão em tempo real para todo país ? www.portalielf.com.br).
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