Crise na Bolívia expõe riscos da internacionalização da Petrobras

Dependente direta da importação do gás boliviano, a Petrobras viu eclodir nos últimos dias uma crise sem precedentes no seu histórico de investimentos externos e que está diretamente relacionada ao componente político que vem sendo dado no atual governo ao seu processo de internacionalização. De acordo com a avaliação de analistas do setor petrolífero, com as relações bastante próximas entre o presidente Luiz Inácio Lula da Silva e seus colegas vizinhos na América do Sul, a estatal brasileira fica em situação delicada para tomar decisões como as deverão ser adotadas pelas outras empresas estrangeiras naquele país: no mínimo, a procura por uma arbitragem internacional para a questão do aumento da tributação para a exploração de gás e petróleo.

Os analistas já apostam que para preservar as boas relações com o país vizinho, e por ser incapaz de substituir num curto prazo a fonte de 24 milhões de metros cúbicos de gás importados da Bolívia (64% da demanda do país), a estatal terá que acatar as novas medidas e arcar com os prejuízos advindos da elevação dos impostos sobre o produto, que não poderão ser repassados para as distribuidoras nacionais, devido aos contratos de longo prazo.

Iniciada estrategicamente em 2000, com a implantação de um novo modelo de organização das suas atividades fora do País, o processo de internacionalização da Petrobras ganhou força em 2002, quando a companhia comprou as refinarias argentinas Santa Fé e Perez Companc, que lhe renderam não só um bom portfólio de Exploração e Produção na própria Argentina, como participação em blocos, unidades de refino e distribuição na Bolívia, Peru, Equador e Venezuela.

Neste último país, inclusive, a Petrobras poderá provar do mesmo gosto oferecido pela nova lei de hidrocarbonetos boliviana, porém com sabor menos amargo. É que o país aprovou medida semelhante à da Bolívia, elevando seus tributos sobre a exploração aos mesmos níveis de 50% e reestatizou suas reservas, tomando para si o controle que estava nas mãos de empresas estrangeiras.

A idéia é que, como na Bolívia, as companhias passem apenas a ser remuneradas por seus serviços prestados. A medida atinge de maneira menos direta a Petrobras, pelo fato de a empresa brasileira não ter forte atuação nas atividades exploratórias da Venezuela e nem mesmo depender diretamente de algum combustível lá produzido, como é o caso do gás boliviano.

Mas a verdadeira "batalha" que o governo venezuelano trava com as empresas estrangeiras lá instaladas sugere uma nova forma de socialismo, que embute às suas relações comerciais com este país um elevado risco. Pois é justamente com o país governado por Hugo Chávez – um militar de esquerda cuja postura anti-EUA e cujos laços com Cuba já deixaram os investidores de cabelos em pé – que a Petrobras vem desenvolvendo sua principal parceria estrangeira.

Petrobras e PDVSA, a estatal venezuelana de petróleo, planejam uma série de atividades complementares na área de exploração em águas profundas na Venezuela, construção de uma refinaria no Brasil e até mesmo a aquisição ou aluguel de uma unidade de refino em conjunto fora dos dois países, mais provavelmente nos Estados Unidos.

"Os conceitos sobre o quer a Petrobras e o que quer o governo sempre se confundem. A Petrobras vive hoje uma crise de identidade. Não sabe se segue a política desenvolvimentista do governo e se assume como seu principal instrumento, mesmo que assuma riscos e prejuízos para isso, ou se remunera devidamente seus acionistas, como é esperado de uma empresa com capital aberto", avalia o diretor do Centro Brasileiro de Infra-Estrutura (CBIE), Adriano Pires. Para ele, entretanto, a estratégia da Petrobras de buscar novas áreas de investimento é "absolutamente correta". "É preciso apenas que ela defina seu foco", considera.

O professor no núcleo de Energia do Instituto de Economia da UFRJ, Helder Queiroz, avalia que a Petrobras terá que assumir riscos se quiser se internacionalizar, já que todas as áreas potenciais para exploração e produção oferecem algum tipo de risco, seja ele apenas o geológico e o financeiro, ou os mais temidos: político e regulatório. "A Petrobras tem condições tecnológicas e deve oferecer esta sua expertise em águas profundas para conquistar maior espaço no exterior", acredita.

Para o analista da Fator Corretora, Luiz Félix Cavallari a Petrobras acerta em sua investida internacional, quando pulveriza seus investimentos e não concentra atividades em um único País, como o ocorrido na Bolívia. "A Petrobras hoje representa 15% do PIB boliviano. É claro que outras empresas estão passando pelo mesmo problema com a atual crise política de lá, mas sobre nenhuma haverá tal impacto como sobre a estatal brasileira", avalia. Ele defende como sendo um "caminho sem volta" o que a Petrobras hoje trilha na "invasão" de espaço estrangeiro.

A estatal está presente atualmente em 20 países, com atividades operacionais (Angola, Argentina, Bolívia, China, Colômbia, Equador, Estados Unidos, Irã, Líbia, México, Nigéria, Peru, Tanzânia e Venezuela), escritórios (Nova Iorque, Tóquio, Londres e Cingapura) e subsidiárias (Ilhas Cayman – Braspetro Oil Services Company – Brasoil; e Holanda Petrobras Netherlands B.V.).

Destes países, a empresa possui produção em nove deles, com uma média em 2005 de 265,4 mil barris por dia, pelo menos três vezes a mais do que em 2000, quando tinha produção média de 73,5 mil barris diários. A intenção presente no planejamento estratégico da estatal para até 2010 é destinar à área internacional US$ 7,5 bilhões, de um total de US$ 53,6 bilhões que serão investidos no período. Isso permitirá que a produção de petróleo e gás cresça em 12,1% ao ano, triplicando nos próximos cinco anos.

O diretor da área internacional da estatal, Nestor Cerveró, foi procurado para falar sobre o processo de internacionalização da Petrobras, mas não atendeu a reportagem da Agência Estado.

A Líbia é a mais nova região acrescentada ao portfólio da Petrobras no exterior. Depois de 11 anos fora do País, a Petrobras voltou à Líbia após vencer a primeira rodada de licitações promovida pela estatal local após mais de 20 anos de fechamento às companhias internacionais. A Petrobras detém 70% de participação como líder de um consórcio com a empresa Oil Search Limited (OSL), de Papua Nova Guiné, e atuará como operadora.

O contrato prevê, para a fase exploratória, um período de cinco anos que, em caso de descoberta, poderá ser prorrogado por mais 20 anos, já então com os direitos de produção compartilhados com a NOC. Na fase exploratória, o contrato estabelece um compromisso de investimento mínimo de US$ 21 milhões e a obrigação de perfurar um poço, além de efetuar levantamentos sísmicos.

O retorno à Líbia está alinhado ao Plano Estratégico 2015 da Petrobras, que estabelece a busca de forte crescimento internacional em áreas-foco, entre elas as de águas profundas e ultraprofundas da costa do continente africano, onde a Companhia já atua em três outros países: Nigéria e Angola (na parte oeste) e Tanzânia (a leste). Também ainda não é oficial, mas a Petrobras pode começar a atuar na Argélia (segundo país exportador de petróleo para o Brasil, atrás da Nigéria). No início de maio, o secretário-executivo do Ministério do Desenvolvimento, Marcio Fortes, afirmou logo após a solenidade de abertura do Seminário Empresarial da Cúpula América do Sul – Países Árabes, que o governo brasileiro está interessado em explorar a possibilidade de exportações para a Argélia. Segundo ele, há um forte desequilíbrio na balança comercial dos dois países em função da importação de nafta.

Estudo sobre a avaliação dos riscos no negócio do petróleo, defendido como tese de mestrado no final de 2003 na Coordenação de Pós-Graduação de engenharia da Universidade Federal do Rio de Janeiro pelo engenheiro Marcus Vinicius Lourenço Margueron aponta que o risco é inerente indústria de petróleo e cabe a cada empresa administrá-lo da melhor maneira, pesando retornos financeiros, e ameaças políticas.

"O risco operacional na indústria do petróleo é muito maior que o de outros minérios, devido às condições mais adversas de exploração e produção, que resultam nos elevados custos da atividade (…) No entanto, as empresas aceitam este desafio já que muitas vezes a descoberta de óleo por um único poço compensa todo um programa exploratório. O petróleo é uma commodity com a qual os produtores alcançam elevadas margens", avalia Margueron em sua tese.

Hoje, por exemplo, o custo de exploração de um barril de petróleo no Brasil é de US$ 5,95 sem participações governamentais, ou US$ 13,54 com as taxações, o que representa uma boa margem com o preço do petróleo internacional na casa dos US$ 50.

Para Jean Paul Prates, da Expetro, este novo patamar de preços, inclusive, é o que vai permitir que as empresas multinacionais do setor assumam mais e mais riscos para acessar o petróleo que está cada vez mais escasso e, portanto, em locais "mais escondidos". "Muitos projetos podem sair da gaveta com este novo patamar", acredita o especialista.

A própria Petrobras deve revisar para cima em seu planejamento estratégico o valor considerado para justificar a viabilidade técnica de uma obra, o que pode permitir que saiam do papel projetos, por exemplo, como a exploração de reservas que hoje se situam abaixo da Bacia de Campos e são consideradas financeiramente inacessíveis.

Na tese defendida por Margueron na UFRJ, entretanto, é lembrado que mesmo "com a aplicação de muito dinheiro, conhecimento, experiência e com o uso de todo o arsenal tecnológico disponível conseguimos apenas reduzir riscos".

"A nova realidade econômica em que nos encontramos requer que empresários do setor de petróleo necessariamente analisem o risco político de cada uma das nações onde existam oportunidades exploratórias, e o considerem na priorização dos projetos de sua carteira, uma vez que a descontinuidade política normalmente resulta em grandes perdas financeiras para o investidor. O caráter estratégico e a importância política do petróleo são indiscutíveis, uma vez que a demanda está concentrada nos países desenvolvidos e suas fontes se encontram praticamente em sete países, cinco do Oriente Médio, o México e a Venezuela, todos em estágio de desenvolvimento", avalia.

Uma forma de minimizar estes riscos políticos, lembra o engenheiro ainda em sua tese, é a linha específica de seguro contra risco político em atividades de exploração e produção de petróleo criada pela Agência Nacional do Governo norte-americano a Overseas Private Investment Corporation (OPIC), com o intuito de promover e facilitar o investimento em mercados emergentes.

"Essas seguradoras possuem metodologias próprias de análise dos riscos políticos nacionais, a fim de definir os custos dos seguros, impactando diretamente o fluxo de caixa dos investidores e justificando a introdução dessa variável no processo decisório de investimentos internacionais na indústria do petróleo", acrescenta.

Questionado sobre o assunto, o diretor financeiro da Petrobras, José Sérgio Gabrielli, afirmou na apresentação dos resultados da companhia no primeiro trimestre deste ano que a estatal ainda não havia feito um seguro de risco político para a Bolívia. Ainda segundo Gabrielli, a empresa estava avaliando as condições para a necessidade de fazer um provisionamento para as possíveis perdas com a situação.

Grupos de WhatsApp da Tribuna
Receba Notícias no seu WhatsApp!
Receba as notícias do seu bairro e do seu time pelo WhatsApp.
Participe dos Grupos da Tribuna
Voltar ao topo