A condição para o desenvolvimento de condutas éticas no exercício de qualquer atividade gerada na administração pública é o respeito aos comandos normativos, à lei e os princípios. Para o filósofo Jungen HABERMAS, conduta ética é toda aquela que se circunscreve aos limites da lei. No entanto, nem sempre o cumprimento à lei é realizado de forma a evitar práticas ilícitas, sejam de quaisquer natureza e espécie, ora em razão da complexidade do sistema normativo e jurídico de nosso País, ora também pelo emaranhado de leis, fruto de uma galopante inflação legislativa que vivenciamos.
Em louvor ao principio constitucional da reserva legal aplicável à administração pública, significa que a conduta do administrador público – genericamente – deve substanciar-se de conteúdo normativo (legal), pois, este deve proceder somente em conformidade com os ditames legais. Ditames legais prescritivos do comportamento e/ou procedimento do agente público. Ao agir em consonância com a legalidade e os demais princípios o agente administrativo procederá segundo o “preceito” ético, não havendo o que mais falar em moralidade, muito embora existir discussões acerca do denominado princípio da moralidade administrativa (art. 37 da Constituição da República), mas esse não é o tema da presente reflexão.
Outrossim, essa legalidade prescritiva da conduta do administrador público detém uma característica que lhe é peculiar, a estrita formalidade do seu agir no estabelecimento da contratação. Vale dizer que, há casos em que o administrador público ao praticar uma conduta com a específica finalidade de suprir necessidade premente de real interesse público, porque busca a realização do bem comum, incorre em desconformidade com uma formalidade estabelecida na lei. Nesse caso, diriam os normativistas – maioria absoluta, principalmente no judiciário – estaria configurado um ilícito administrativo. Por quê? Porque estes normativistas purificam a operacionalização do Direito exclusivamente na lei. Vejamos, por exemplo, o teor do artigo 21 da Lei 8.429/1992, que regulamenta os atos de improbidade administrativa, ao dispor que a aplicação da sanção independe da ocorrência de dano ao patrimônio público.
Pois bem. Ocorre que é a formalização de contratos com o poder público, de um modo geral e, especificamente, com o Município, usualmente reproduz conseqüências jurídico/criminais de elevada substância para o “chefe” do poder executivo. Portanto, o ato de contratar com o Município pode gerar várias espécies de responsabilidades, mas, com relação ao tema ora desenvolvido, frisaremos a do plano administrativo e a do plano criminal, que as denominamos condutas híbridas. Hibrida porque a prática de uma conduta na seara administrativa pode (re)produzir um efeito criminal, isto é, um ou mais crimes. Todavia, interessa-nos, neste momento, a conduta criminal.
Expostas as premissas acerca da formalidade das contratações com a administração pública, notadamente, com o Município, porquanto condição para pré-compreensão da atividade do agente administrativo e fundamento da sua responsabilidade, indispensável remeter o objeto desta breve investigação para o sistema criminal. Convém destacar que o âmbito de imputação do sistema jurídico administrativo, no ato de licitar, admite a responsabilidade solidária, com culpa (v. artigos 25 § 2º, e 51, § 3º, da Lei 8.666/93). Todavia, esse modelo de responsabilidade solidária na licitação permite a incidência de culpa em sentido estrito (negligência, imperícia e imprudência) como pressuposto da imputação, podendo viciar o processo licitatório.
Entretanto, a culpa em sentido estrito não se estabelece como pressuposto da responsabilidade criminal nas condutas originárias das licitações por ausência de previsão legal. Isto é, infirmada a forma culposa da conduta no juízo de proibição que delimita o ilícito criminal não haverá crime, sob pena de transgressão ao principio da reserva legal.
A distinção entre essa responsabilidade solidária oriunda do ato licitante e a responsabilidade criminal – subjetiva – se faz necessária para mensurá-la em conformidade com os seus correspondentes campos jurídicos. Assim, a primeira corresponde ao direito administrativo e a segunda ao direito criminal, isto é, referem-se aos ilícitos licitantes e criminais, respectivamente. Exatamente aí se constata um sério problema! Por quê? Do ponto de vista pragmático, rotineiramente, a prova produzida na apreciação do ilícito administrativo, sob o escólio da responsabilidade solidária poderá ser remetida para o campo jurídico criminal servindo de esteio para a investigação do ilícito penal, que se fundamenta na responsabilidade subjetiva e não admite, neste caso a culpa em sentido estrito. Este processo fere o princípio constitucional/penal da reserva legal e da culpabilidade, porque permite a construção do convencimento do intérprete, singularmente do juízo, sobre a conduta criminal a partir de pressupostos ilegítimos.
Raimundo Araújo Neto, mestre e doutor em direito criminal. Professor titular de direito penal na OPET/PR. Advogado em Curitiba/PR (rainetoadv@gmail.com).