Crime hediondo admite penas substitutivas?

É possível aplicar penas substitutivas nos crimes hediondos? Finalmente o Pleno do STF está enfrentando essa (tormentosa) questão. No HC 84.928-MG, rel. Min. Cezar Peluso (j. 27.09.2005), a resposta da Primeira Turma da Colenda Corte já foi em sentido positivo. A doutrina achava-se dividida, preponderando esse mesmo entendimento. No meu livro Penas e medidas alternativas (São Paulo: RT) expendi uma série de argumentos favoráveis à tese.

Enfocada a polêmica sob a perspectiva do Direito penal, não resta dúvida (segundo nosso juízo) que cabe, em princípio, pena substitutiva em alguns crimes hediondos (mais precisamente, nos não violentos, cuja pena não exceda a quatro anos). Pensar o contrário seria transformar o Direito penal em puro poder punitivo.

O HC foi deferido pelo STF, contra acórdão do STJ que, aplicando o princípio da especialidade, mantivera decisão que determinara o cumprimento da pena em regime integralmente fechado. O juiz de primeira instância, com fundamento no art. 44 do CP, substituiu a prisão por duas penas restritivas de direitos. O Tribunal de Justiça reformou essa decisão, cassando a substituição. Acórdão do STJ mantivera a orientação do TJ. A proibição de progressão de regime em crimes hediondos (art. 2.º, § 1.º, da Lei 8.072/1990) foi o fundamento invocado pelas decisões do TJ e do STJ.

Os fundamentos acolhidos pelo voto do Min. Cezar Peluso para restabelecer a decisão de primeiro grau foram os seguintes:

(a) embora a Lei 8.072/1990 determine o cumprimento da pena privativa de liberdade em regime integralmente fechado, nada dispôs acerca da suspensão condicional ou da substituição da prisão. A legalidade, no âmbito das medidas restritivas da liberdade, é rigorosamente estrita. Em Direito penal, contra o réu, quando a lei diz ?A?, não se pode estender esse ?A? para ?B? ou ?C?. Medidas restritivas do ius libertatis não podem ser inferidas de texto legal (leia-se: devem ser expressas). Não existe analogia contra o réu nesse campo do ordenamento jurídico.

(b) a constitucionalidade do impedimento de progressão de regime encontra-se em discussão pelo Plenário do STF (HC 82.959-SP). Por quatro votos a dois, por ora, está o STF admitindo a inconstitucionalidade desse impedimento. Há uma forte tendência de o STF julgar inconstitucional o § 1.º do art. 2.º da Lei 8.072/1990.

(c) a Lei 9.714/1998, posterior à Lei 8.072/1990, ao ampliar a possibilidade de substituição da pena privativa de liberdade por penas restritivas de direitos, não abrigou princípio ou norma que obstasse a sua aplicação aos chamados ?crimes hediondos?, senão apenas àqueles cujo cometimento envolva violência ou grave ameaça à pessoa. Essa restrição objetiva é muito precisa. Não abarca violência contra ?coisas? nem muito menos crimes não violentos.

(d) no crime de tráfico ilícito de entorpecentes não há, em regra, o emprego de violência ou grave ameaça à pessoa.

(e) a exigência do regime fechado instituída pela Lei 8.072/1990 refere-se à execução de pena privativa de liberdade imposta e, sendo esta substituída por pena restritiva de direitos, não haveria pertinência em cogitar-se do teórico regime fechado de execução como obstáculo à substituição já operada.

A todos esses argumentos ainda poderíamos agregar mais dois: (a) nem tudo que o legislador brasileiro catalogou como hediondo é efetivamente hediondo. Um beijo lascivo, por exemplo, literalmente, é crime hediondo pelo ordenamento vigente. Isso, entretanto, fere o bom senso e a razoabilidade. Cabe ao juiz, em cada caso concreto, afastar a etiqueta de hediondo, quando o fato não apresenta essa característica; (b) por força do princípio da suficiência das penas alternativas, quando essas são suficientes para a reprovação e prevenção do crime, não há porque manter-se a pena de prisão, que é medida de extrema ratio.

O STJ vem negando a substituição da prisão por penas restritivas sob
o argumento do princípio da especialidade. Esse princípio tem aplicação
quando estamos diante de uma lei especial. A lei é especial quando
contém todos os requisitos da geral e mais alguns, chamados
especializantes. O Código penal cuidou do instituto da substituição da
prisão. Fez suas restrições. Essa é a lei geral sobre o assunto. A lei
dos crimes hediondos absolutamente nada dispõe sobre esse assunto.
Logo, não existe relação de especialidade entre o Código Penal e a Lei
dos Crimes hediondos.

Conclusão: o princípio da especialidade está sendo invocado pelo STJ
de modo incorreto, como expressão do puro poder punitivo, não como
evidenciação do Direito penal. Considere-se, ademais, que a relação da
especialidade só pode ser feita in abstrato (ou seja, comparando-se a
letra de cada lei). Quando inexiste qualquer correspondência entre a
letra da lei geral e a da lei especial, não há que se falar em relação
de especialidade, que não pode ser inferida de textos semelhantes, sim,
deve ser absolutamente expressa. A proibição de progressão de regime
não tem nada a ver com substituição da pena de prisão. Aliás, esta
antecede àquela. Institutos distintos não podem ser invocados para se
estabelecer uma relação de especialidade. Não há especialidade nesse
caso.

O equívoco do argumento do STJ é patente, s.m.j.. Daí sua
irrelevância para resolver a questão posta neste artigo. Preferível a
posição da Primeira Turma do STF, que mais uma vez está raciocinando
cientificamente. Se o Direito penal é uma ciência, não se pode deixar
de observar seu método, seu objeto, seus princípios e suas regras.
Vejamos como vai se posicionar (em breve) o Pleno do STF (está em pauta
o HC 85.894-RJ, rel. Min. Gilmar Mendes). Aguardemos.

Luiz Flávio Gomes é doutor em Direito Penal pela Faculdade de
Direito da Universidade Complutense de Madri, mestre em Direito Penal
pela USP, secretário-geral do IPAN (Instituto Panamericano de Política
Criminal), consultor e parecerista, fundador e presidente da LFG Rede
de Ensino Luiz Flávio Gomes (1.ª Rede de Ensino Telepresencial do
Brasil eda América Latina – Líder Mundial em Cursos Preparatórios Telepresenciais  www.lfg.com.br)

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