Efeitos penais face a inconstitucionalidade da Lei nº 9.718/98
Recentemente o Egrégio Supremo Tribunal Federal declarou a inconstitucionalidade do artigo 3.º, § 1.º, da Lei n.º 9.718/98, cujo dispositivo elevou a base de cálculo para os tributos de PIS e COFINS, o que para fins de direito tributário importa em inexigibilidade do percentual elevado pela norma reconhecida inconstitucional, e nas hipóteses de pagamento, desde que não haja prescrição, nasce o direito de repetição do indébito sobre tais valores.
E quais são os efeitos penais desta declaração de inconstitucionalidade para os casos em que haja persecução criminal, ou até mesmo decisão condenatória com trânsito em julgado, face sonegação fiscal desta modalidade de tributo, cuja base de cálculo seja aquela declarada inconstitucional.
Quando uma norma é declarada inconstitucional, principalmente pelo Supremo Tribunal Federal, de imediato importa em alteração concreta sobre o direito em debate.
Transportando esta decisão para os feitos penais observamos algumas conseqüências que inviabilizam o prosseguimento da ação penal, ainda que formalmente a Certidão de Divida Ativa tenha gerado constituição definitiva do débito face o esgotamento da via administrativa.
Isto porque esta nova posição do Egrégio Supremo Tribunal Federal ao declarar a inconstitucionalidade da lei que elevou a base de cálculo para os tributos tidos como sonegados, cuja Certidão de Divida Ativa foi emitida com base neste norma, obrigatoriamente precisamos admitir que a constituição do débito tributário está contaminada de vício insanável, sendo, portanto, indispensável para sua constituição a emissão de nova Certidão de Dívida Ativa, excluindo-se a elevação contemplada pela lei inconstitucional.
Para a desconstituição da Certidão de Dívida Ativa no caso ora em estudo, podemos seguir diversos caminhos, como por exemplo:
a) a busca da declaração da nulidade da CDA na via judicial, seja através de mandado de segurança, ação anulatória, embargos à execução, etc.
b) requerimento administrativo junto a Secretaria da Receita Federal para que declare a nulidade da constituição do débito tributário.
c) declaração da nulidade de ofício, pelo agente que emitiu a Certidão de Dívida Ativa, esta calcada na Súmula 473 do Supremo Tribunal Federal. Verbis: ?A administração pode anular seus próprios atos, quando eivados de vícios que os tornam ilegais, porque deles não se originam direitos;?
Em qualquer hipótese o agente arrecadador terá que expedir nova Certidão de Dívida Ativa, constituindo novamente o débito tributário, com exclusão da base de cálculo da elevação contemplada na norma que foi declarada inconstitucional.
Assim, independentemente do caminho que for adotado para fins de desconstituir o débito tributário da CDA já expedida, com lavratura de outra, verifica-se que dito débito, de direito, ainda não se encontra definitivamente constituído, porque na esteira de entendimento dos nossos Tribunais Superiores, há necessidade do esgotamento da via administrativa para ser iniciada a persecução penal.
De outra banda, é importante observar que principalmente a administração pública não pode querer que atos nulos levados a efeito possam gerar direitos, nem mesmo na ceara cível, e com maior razão na esfera penal, ?porque deles não se originam direitos?, nos termos da súmula 473 do Egrégio Supremo Tribunal Federal
Assim, na medida em que nos deparamos diante de nulidade absoluta sobre constituição de crédito tributário, o que a torna inconsistente para exigir-se o pagamento, e sendo pacífico que somente após definitivamente constituído dito débito é possível dar-se início à ação penal, inegavelmente estamos diante de falta de justa causa para o prosseguimento da ação penal.
Não há necessidade de se fazer uma análise mais aprofundada para se concluir que a Fazenda Pública não obterá sucesso caso pretenda defender a consistência de dita Certidão de Dívida Ativa perante o judiciário.
Ora, se nem mesmo na via judicial cível dita Certidão de Dívida Ativa resistirá no aspecto de sua consistência para se exigir o montante do débito lançado, com maior razão na esfera penal não é possível pretender que dita CDA não esteja contaminada de vício, e com suporte capaz de embasar decreto penal condenatório.
Assim, tendo o artigo 3.º, § 1.º, da Lei n.º 9.718/98, sido considerado inconstitucional pelo Egrégio Supremo Tribunal Federal, e dito dispositivo legal servido de base para aplicação do valor elevando a base de cálculo para apurar o quantum de tributo supostamente devido pelo acusado, importa em reconhecer que a Certidão de Dívida Ativa que constituiu o débito tributário encontra-se contaminada de vício, porque lavrada com base em lei declarada inconstitucional, cuja decisão gera efeitos ex tunc.
Também é indispensável que a peça acusatória descreva discriminadamente o débito tido como sonegado, haja vista inúmeros benefícios que surgem quando há o pagamento desta dívida, cujo direito está relacionado dentre aqueles considerados de ordem pública, cujo requisito não fica preenchido na medida em que a lei utilizada para aferir a base de cálculo do tributo foi considerada inconstitucional. Sobre esta matéria já tivemos oportunidade de escrever em estudo publicado no site www.ibccrim.org.br, de 20.09.2005.
Ainda que fossem vencidas as teses atrás postas, mesmo assim não seria possível admitir que a Certidão de Dívida Ativa nos moldes ora em estudo e que também lastreou a denúncia, dê suporte a um decreto condenatório, haja vista que a matéria relacionada com a base de cálculo do tributo tido como sonegado, encontra efetiva controvérsia nos nossos tribunais.
Neste caso, não é possível se ter como típica a conduta tida como de sonegação fiscal, porquanto, havendo divergência em nossa jurisprudência sobre o tema, não se pode admitir que tenha tipificado o crime, sendo inclusive este o entendimento da nossa jurisprudência. Verbis: ?Havendo inúmeras decisões judiciais na esfera tributária concluindo ser possível o aproveitamento não-cumulativo do imposto, resta afastada a suposta fraude descrita na denúncia e, em conseqüência, o próprio caráter criminoso da conduta. Reconhecendo não ser o fato penalmente típico, impõe-se a absolvição dos acusados com apoio no art. 386, inc. III, do Diploma Processual Penal.? (Rel. Des. Élcio Pinheiro de Castro, Ap. Crim. Nº 2003.04.01.026410-4, julg. 28.04.04 – DJU2, 12.05.04, p 719).
E nem se diga que a divergência dos tribunais é apenas quanto a base de cálculo, o que poderia dar suporte à Certidão de Dívida Ativa para embasar decreto condenatório, haja vista que não se refere a inexistência do tributo.
Isto porque, na medida em que há divergência quanto a base de cálculo a ser aplicada ao fato gerador, não se tem como liquido, certo e exigível dito tributo, enquanto perdurar este divergência, não estando, portanto, constituído definitivamente o crédito tributário, face a controvérsia instaurada perante os tribunais relativamente a aferir o efetivo valor que deve ser cobrado a título deste tributo.
A propósito desta questão, o Egrégio Superior Tribunal de Justiça já deixou assentado que quando se discute na esfera administrativa a existência do débito tributário e o quantum debeatuar, há obstáculo para o prosseguimento do feito criminal. Verbis: ?a única hipótese em que o processo criminal encontra obstáculos na esfera administrativa tributária é quando se discute a existência do débito tributário e o quantum debeatuar? (Rel. Min. Gilson Dipp, HC n.º 41.386/SP, DJU de 17.07.05, p. 538).
Assim, considerando que no valor lançado na Certidão de Dívida Ativa ora em estudo está embutida a elevação da base de cálculo prevista na lei declarada inconstitucional, dito título de crédito não é líquido, certo e exigível, porque há excesso do valor do tributo exigido pelo fisco. Portanto, o vício está localizado no quantum debeatuar, que é justamente o elemento capaz de impedir a persecução criminal.
Isto importa em reconhecer que possível crédito tributário não pode ser considerado como sendo constituído definitivamente, porque lançado a maior, face a declaração de inconstitucionalidade da norma que fixou a sua base de cálculo.
Ao contrário, em vista da já citada Súmula do Egrégio Supremo Tribunal Federal, em interpretação conjunta com o reconhecimento da inconstitucionalidade da norma ora em referência, verifica-se que a Certidão de Dívida Ativa que embasou ou oferecimento e recebimento da denúncia ao acusado, não se presta para comprovar a materialidade do crime, por estar contaminada de vício na sua origem.
Assim, considerando que a Certidão de Dívida Ativa em referência é insubsistente para fins de direito civil e administrativo, porquanto não possui força coercitiva para embasar sequer a exigência coercitiva do pagamento do valor nela contido, não se pode admitir que para fins de direito penal ela tenha valor probante para comprovar a materialidade do crime.
Por isso, constatado o vício na origem da constituição do débito tributário ora em estudo, é o habeas corpus o caminho mais curto e célere para remover tal mácula para fins penais, seja quando a persecução criminal encontrar-se ainda em andamento, ou com sentença condenatória já transitada em julgado, haja vista que se cuidando de falta de justa causa para a ação penal reconhecível de pleno, o que é o caso, admite-se a análise do direito através do remédio heróico.
Jorge Vicente Silva é advogado, professor de Pós-Graduação da Fundação Getúlio Vargas e da Escola Superior da Advocacia da OAB/PR, pós-graduado em Direito Processual Penal pela PUC PR, autor de diversos livros publicados pela Editora Juruá, dentre eles, ?Tóxicos – Análise da nova lei?, ?Manual da Sentença Penal Condenatória?, e no prelo ?Crime Fiscal – Manual Prático?. E-mail: jorgevicentesilva@jorgevicentesilva.com.br; advocacia@jorgevicentesilva.com.br, Site ?jorgevicentesilva.com.br?
