Crime de tóxico com prisão em flagrante

O artigo 37 da Lei n.º 6.368/76, prevê que ?Para efeito de caracterização dos crimes definidos nesta Lei, a autoridade atenderá à natureza e à quantidade de substância apreendida, ao local e às condições em que se desenvolveu a ação criminosa, às circunstâncias da prisão, bem como à conduta e aos antecedentes do agente.? Parágrafo Único. ?A autoridade deverá justificar, em despacho fundamentado, as razões que a levaram à classificação legal do fato, mencionando concretamente as circunstâncias referidas neste artigo, sem prejuízo de posterior alteração da classificação pelo Ministério Público ou pelo juiz.?

Portanto, pelo teor deste dispositivo legal, a autoridade policial precisa fundamentar a classificação do crime de tóxico, especialmente nos casos de prisão em flagrante.

Observamos que na prática as autoridades policiais não têm o hábito de cumprir esta exigência, limitando-se em apenas indicar a incidência penal, sem maiores considerações.

E quais as conseqüências desta omissão?

A nossa Carta Magna somente admite duas modalidades de encarceramento. Prisão em flagrante delito e por ordem fundamentada de autoridade judicial competente (art. 5.º Inciso LIII).

Em termos de prisão em flagrante, especialmente para os delitos de tóxicos, nos deparamos com duas situações. A primeira relacionada com os delitos capitulados nos artigos 15, 16 e 17, da Lei n.º 6.368/76, para os quais a pena máxima não ultrapassa a dois anos, incidindo por isso a regra do artigo 61 da Lei n.º 9.099/95, c/c artigo 2.º, da Lei n.º 10.259/01, a qual prevê que crimes com apenamento não superior a este quantum, são considerados como de pequeno potencial lesivo.

Para tais delitos não há lavratura de auto de prisão em flagrante, mas sim elaboração de auto circunstanciado, onde o preso se compromete a comparecer em juízo, sendo imediatamente colocado em liberdade, sem outros compromissos, ou prestação de fiança, nos termos do artigo 69, Parágrafo Único, da citada lei n.º 9.099/95.

Já para os delitos capitulados nos artigos 12, 13 e 14, da mesma lei n.º 6.368/76, as penas são elevadas, e de reclusão, não comportando por isso sequer a aplicação do artigo 322, do Código de Processo Penal, o qual autoriza a autoridade policial conceder liberdade provisória ao preso, através de prestação de fiança, quando o delito pelo qual foi preso, a reprimenda corporal for penas de detenção.

Ao contrário, pelo que dispõe a malsinada Lei n.º 8.072/90, em seu artigo 2.º, inciso II, especialmente o delito de tráfico cuida-se de crime hediondo por equiparação, para o qual há proibição de concessão de liberdade provisória.

Assim, nos delitos de tóxico, a manutenção, ou não, no cárcere do autuado em flagrante, depende exclusivamente da classificação dada ao delito pela autoridade policial.

Por isso a diferença entre o crime de porte de substância entorpecente para fins de uso próprio, ou com destinação a terceiros, a classificação do crime é o divisor de águas para fins do preso ser colocado imediatamente em liberdade ou ficar encarcerado aguardando o julgamento do processo.

Portanto, a classificação do crime nestes casos não se cuida de providência que possa ser considerada sem maiores conseqüências caso não seja indicada de forma motivada, mas sim de enorme importância, haja vista que é ela quem definirá quanto ao agente poder ser colocado em liberdade ou ficar preso para responder o processo.

E quando a autoridade policial não cumprir esta exigência legal, qual caminho deve ser seguido pelo juiz ao receber a comunicação da prisão em flagrante?

Ao nosso ver a falta de fundamentação da tipificação do delito importa em nulidade absoluta do auto de prisão em flagrante, não podendo sequer posteriormente à comunicação ao juízo competente, ser suprida pela autoridade policial omissa, e dado o vício na sua essência, deve ser decretada ainda que de ofício pelo juízo competente.

E qual as conseqüências que isso gera?

Pensamos que é necessário conciliar o direito do acusado em ser cientificado dos motivos da imputação que o levou a prisão, assim como o direito/interesse da sociedade em ver preso, especialmente pessoas que praticam os crimes capitulados nos artigos 12, 13 e 14 da Lei n.º 6.368/76.

Isto porque uma interpretação no sentido de que toda vez em que ocorrer dita omissão, deve ser declarada a nulidade do auto de prisão em flagrante e colocado o acusado em liberdade, certamente na prática gerará conseqüências nefastas em muitos casos, com a soltura de pessoas perniciosas para a sociedade.

Também não podemos ignorar os direitos e garantias individuais, inclusive elevadas a preceito constitucional pela nossa Carta Magna de 1988, a qual além dos princípios que orientam no sentido da necessidade desta modalidade de decisão ser fundamentada (devido processo legal, contraditório e ampla defesa CF, artigo 5.º, incisos LIV e LV), deixou expressamente assentado que todas as decisões judiciais e administrativas precisam ser motivadas (art. 93, inciso IX), o que não deixa qualquer margem de dúvida no sentido de não se poder ignorar dito direito do autuado em flagrante.

Além destes dois aspectos de direito/interesse da sociedade e o direito do acusado, pensamos que a sua simples soltura quando não estiver fundamentada a classificação do crime, poderá incentivar algumas autoridades policiais corruptas, a deixarem de motivar o enquadramento penal, justamente para beneficiarem presos autuados em flagrante, com liberdade a ser concedida por juiz, o que acabaria culminando em verdadeiro ?tiro no pé? a pretensão de fazer valer os direitos e garantias do preso, porquanto ele poderia em alguns casos se beneficiar justamente disso para subornar funcionários públicos para praticarem ato processual com vício camuflado, visando a sua soltura.

Assim, pensamos que nos casos em que não houver a fundamentação da classificação penal no auto de prisão em flagrante, cuida-se de ato nulo, devendo necessariamente ser declarada dita nulidade pela autoridade judiciária, com determinação de expedição de alvará de soltura em relação à prisão em flagrante.

Entretanto, no mesmo ato o julgador poderá decretar de ofício a prisão preventiva do autuado, nos termos do artigo 311, do Código de Processo Penal, quando estiver presente ainda que somente um dos motivos para tal, elencados no artigo 312, da citada norma processual, sendo neste caso indispensável que o julgador indique, além dos fundamentos relacionados na norma processual penal, também os motivos e circunstâncias contempladas no citado artigo 37 da Lei n.º 6.368/76, para indicar a classificação do crime.

Portanto, presente ainda que único motivo para decretação da prisão preventiva, o julgador deverá declarar a nulidade do auto de prisão em flagrante, com expedição de alvará de soltura face esta prisão ser ilegal, e decretar a prisão preventiva, determinando a expedição concomitante de mandado de prisão em razão deste novo título prisional.

Pensamos que assim ficará resguardado o direito do preso em saber os motivos da classificação penal do delito que teria cometido, ainda que seja indicada pelo juízo competente, quando decretar a prisão preventiva, o que lhe possibilita insurgir-se contra tais fundamentos quando não forem corretos ou estiverem inquinados de alguma irregularidade, visando a correta classificação penal, a qual poderá ter como conseqüência a sua soltura.

Também ficará resguardada a sociedade, porquanto o Magistrado em casos tais não colocará em liberdade acusado que deva permanecer preso, como por exemplo no caso de prisão levada a efeito com apreensão de grande quantidade de substância tóxica, cuja circunstância de princípio indica de imediato a necessidade da prisão como garantia da ordem pública.

Aceitando-se a tese ora posta, nas hipóteses de lavratura de auto de prisão em flagrante pela prática dos delitos capitulados nos artigos 12, 13 e 14 da Lei n.º 6.368/76, sem que tenha havido a fundamentação da classificação do tipo penal, o acusado somente poderá ser mantido no cárcere quando presentes os motivos que autorizam a decretação da prisão preventiva, sendo ainda, indispensável que o juízo competente para receber a comunicação da prisão, ao recebê-la, motivadamente profira decisão determinando o encarceramento processual do acusado.

Feitas estas considerações concluímos que todo auto de prisão em flagrante em delito de tóxico que não esteja contemplado de fundamentação quanto ao tipo penal imputado ao preso, cuida-se de peça nula, e como tal, incapaz de manter o autuado na prisão, a qual somente poderá ocorrer quando o juízo para o qual for comunicado, decretar o encarceramento preventivo, nos moldes do artigo 311, e seguintes, do Código de Processo Penal.

Jorge Vicente Silva é advogado, professor de pós-graduação da Fundação Getúlio Vargas e da Escola Superior da Advocacia da OAB/PR, pós-graduado em Direito Processual Penal pela PUC/PR, autor de diversos livros publicados pela Editora Juruá, dentre eles, ?Tóxicos – Análise da nova lei?, ?Manual da Sentença Penal Condenatória?, e no prelo ?Crime Fiscal – Manual Prático?.

E-mail: jorgevicentesilva@jorgevicentesilva.com.br; advocacia@jorgevicentesilva.com.br,
Site jorgevicentesilva.com.br

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