Corte Interamericana julgará o Brasil por escuta ilegal

Tive a honra de ser indicado como perito (consultor) pela Comissão Interamericana de Direitos Humanos (que pertence à Corte Interamericana de Direitos Humanos, da OEA) e emiti meu parecer na demanda de n.º 12.353, apresentada perante a Corte, contra a República Federativa do Brasil, por violação da Lei 9.296/96, que regulamenta a interceptação telefônica no nosso país.

Em 1999, no noroeste do Paraná, foi autorizada uma escuta telefônica de forma ilegal.

No Brasil não foi possível anular essa escuta. Daí a demanda contra ele (perante a Corte quem responde é o país signatário dos tratados, não o causador direto da violação).

Do relatório da Comissão Interamericana de Direitos Humanos constam algumas conclusões: 1.ª) a incompetência da autoridade solicitante da interceptação telefônica (polícia militar); 2.ª) a inexistência de decisão fundamentada (a decisão foi vazia, ou seja, sem nenhuma fundamentação); 3.ª) a ampliação do objeto da interceptação, que teria abrangido linha telefônica distinta da individualizada na decisão; 4.ª) o excesso na duração da interceptação (escuta autorizada por 49 dias, quando a lei fala em 15); 5.ª) a divulgação indevida das gravações.

De acordo com a demanda apresentada (fls. 12), a solicitação da interceptação telefônica fora realizada por um major pertencente ao Quadro de Oficiais da Polícia Militar do Paraná.

A lei brasileira (art. 3.º da Lei 9.296/96) só fala em policial civil e representante do Ministério Público. A autoridade policial só pode solicitar a interceptação na hipótese de investigação militar. Não era o caso.

A juíza da Comarca de Loanda deferiu a medida da seguinte maneira: “R. e A. Defiro. Oficie-se”. A fundamentação da decisão que autoriza a interceptação telefônica é requisito previsto expressamente na lei (art. 5.º). A sua violação está mais do que evidenciada. Não houve fundamentação.

De outra parte, conquanto a autorização de monitoramento tenha sido concedida em relação a uma linha telefônica (44-4621418) pertencente à sede da investigada (Coana), a interceptação realizou-se também em relação à linha 44-4621320, instalada na sede de outra instituição (Adecon), objeto da medida, sem autorização judicial.

A lei brasileira exige, ademais, fundamentação específica em cada vez que se renova a interceptação. Houve, no caso, uma renovação. Quinze dias mais quinze dias. Ocorre que a interceptação durou 49 dias. Uma segunda renovação devia ter ocorrido e não ocorreu.

Pelo que consta dos autos, em 8 de junho de 1999 fragmentos das gravações obtidas foram reproduzidos em noticiário e em diversos meios da imprensa escrita do Brasil.

A Lei n.º 9.296/96, em dois dispositivos determina a observância do segredo de justiça em relação às diligências, gravações e transcrições resultantes da interceptação.

Em seu art. 1.º determina que o magistrado, ao autorizá-la, decrete o segredo de justiça, o que faz a interceptação ser autuada em autos apartados. Na seqüência, em seu art. 8.º determina a preservação desse sigilo. A inobservância dessa determinação e a conseqüente quebra do segredo de justiça configura o crime previsto no art. 10 do referido diploma.

Conclusão: diante de tudo quanto foi exposto (a incompetência da autoridade solicitante, a inexistência de decisão fundamentada, a ampliação do objeto da interceptação, o excesso na duração da interceptação, e, por fim, a divulgação indevida de trechos colhidos durante a captação) impõe-se admitir a existência de vícios insuperáveis na interceptação telefônica objeto de questionamento. Sua nulidade nos parece evidente.

Conclusão: ao que tudo indica uma ,vez mais o Brasil será condenado pela Corte Interamericana de Direitos Humanos. Na primeira oportunidade que isso ocorreu (caso Ximenes Lopes) o Brasil foi condenado a pagar a indenização de mais de cento e quarenta mil dólares à família da vítima, em virtude da morte daquele numa clínica psiquiátrica em Sobral (CE), sem nenhum tipo de atendimento.

Os operadores jurídicos, em geral, ainda desconhecem nossa quinta instância, que é a Corte Interamericana (sediada em San Jose, na Costa Rica). Esse panorama, no entanto, deve ser alterado o mais pronto possível.

Em livro recente que escrevemos sobre o tema (Comentários à CADH, Gomes, L.F. e Mazzuoli, Valério, RT, São Paulo: 2008) procuramos descrever pormenorizadamente como podemos fazer chegar uma petição a essa Corte (veja p. 223, especialmente).

Sobretudo depois que o STF reconheceu o valor supralegal dos tratados internacionais de Direitos Humanos (RE 466.343-SP), devemos conhecer (o mais aprofundadamente possível) o sistema de proteção dos direitos humanos que vigora no nosso entorno interamericano. Afinal, cuidar do nosso desconhecimento é talvez o investimento mais barato que fazemos em toda nossa vida.

Luiz Flávio Gomes é professor doutor em Direito Penal pela Universidade de Madri, mestre em Direito Penal pela USP, professor de Direito Penal na Universidade Anhangüera e diretor-presidente da Rede de Ensino LFG (www.lfg.com.br). Foi promotor de Justiça (1980 a 1983), juiz de Direito (1983 a 1998) e advogado (1999 a 2001).

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