A Corte Interamericana de Direitos Humanos, no caso “Julia Gomes Lund e outros” (caso “Guerrilha do Araguaia”), em absoluto respeito aos direitos das vítimas e seus familiares, decidiu (sentença publicada em 14/12/10) que os crimes contra a humanidade (mortes, torturas, desaparecimentos), cometidos pelos agentes do Estado, durante a ditadura militar brasileira (1964-1985), devem ser devidamente investigados, processados e punidos.
A Corte seguiu sua jurisprudência já fixada em relação à Argentina, Chile etc. (casos Barrios Altos, Almonacid Arellano e Goiburú, dentre outros).
A sentença foi provocada por três ONGs brasileiras (Centro Pela Justiça e o Direito Internacional, Grupo Tortura Nunca Mais do Rio de Janeiro e Comissão de Familiares de Mortos e Desaparecidos Políticos de São Paulo).
A primeira consequência prática dessa importante decisão é a seguinte: a lei brasileira de anistia (Lei 6.683/1979) não possui nenhum valor jurídico para impedir doravante a apuração dos referidos crimes cometidos pelos agentes do Estado (ditadores ou por quem agiu em nome da ditadura).
Fim da “legalidade autoritária”
A “legalidade autoritária” tradicional no Brasil (consoante lição de Anthony Pereira), que é fruto de um ancestral conchavo (explícito ou implícito) entre o Poder Político (Legislativo e Executivo) e alguns setores do Poder Judiciário, acaba de se desmoronar (em relação aos crimes da ditadura).
O Poder Político brasileiro, para acobertar tais crimes, aprovou em 1979 uma lei que foi considerada (pela Corte) como uma verdadeira auto-anistia. O legislador também se equivoca. Sua palavra é somente a primeira, sobre a construção do direito.
Nem tudo que ele aprova vale. Lei vigente não se confunde com lei válida. A vontade última do direito não é do legislador, sim, dos juízes. O século XXI é o século dos juízes (assim como o XIX foi do legislador e o XX foi do Executivo).
STF já não dá mais a última palavra em matéria de direitos humanos
O STF, mantendo a tradição do Judiciário brasileiro no sentido de ser tendencialmente autoritário, em abril de 2010, validou a citada lei de anistia (7 votos contra 2), impedindo dessa maneira o reconhecimento dos direitos dos familiares dos mortos, torturados e desaparecidos, ou seja, a apuração e o processamento desses crimes contra a humanidade.
Ocorre que na era do direito globalizado e universalizado (direito pós-moderno) as decisões do STF, em matéria de direitos humanos, já não significam a última palavra.
Acima do Judiciário brasileiro está o Sistema Interamericano de Direitos Humanos, que é composto de dois órgãos: Comissão e Corte Interamericanas de Direitos Humanos. A primeira está sediada em Washington, enquanto a segunda está na Costa Rica.
Quando nossos direitos, previstos na Convenção Americana de Direitos Humanos, não são amparados pela Justiça brasileira, temos possibilidade de recorrer à Comissão Interamericana, que passa a ser uma espécie de “5ª instância”.
Todas as violações de direitos humanos não amparadas pelo Judiciário brasileiro podem (e devem) ser levadas ao conhecimento da citada Comissão, que resolve o assunto (tal como fez no caso Maria da Penha) ou o encaminha para a Corte (assim foi feito no Caso Araguaia).
Sob o aspecto jurídico a decisão da Corte Interamericana demonstra que as decisões do STF já não são definitivas, quando em jogo está um direito previsto na Convenção Americana sobre Direitos Humanos (também conhecida como “Pacto de San José da Costa Rica”, ratificado pelo Brasil em 1992 sem qualquer reserva).
Aplausos aos votos vencidos de Lewandowski e Ayres Britto
Quando o STF validou a lei de anistia brasileira, dois foram os (lúcidos) votos vencidos: Ricardo Lewandowski e Ayres Britto. Foram os dois únicos a compreender (na ocasião) a atual dimensão da proteção dos direitos humanos, que não é mais só doméstica.
Em matéria de direitos humanos a última palavra &eacu,te; da Comissão ou da Corte Interamericana de Direitos Humanos. Os dois Ministros citados foram os únicos que admitiram que a clássica jurisprudência da Corte não iria secundar a lei de anistia brasileira.
Do “domestic affair” ao “international concern”
Do sistema do “domestic affair” (a tutela dos nossos direitos compete exclusivamente aos juízes nacionais) passamos para o sistema do “international concern” (se os juízes nacionais não tutelam um determinado direito, isso pode ser feito pelos juízes internacionais).
Os juízes internos fiscalizam o produto legislativo do Congresso Nacional. Se eles não amparam os direitos das pessoas, compete aos juízes internacionais cumprir esse papel.
Finalmente, o “acerto de contas”
O “acerto de contas” relacionado com os crimes cometidos durante o período da ditadura militar finalmente tornou-se possível. O STF, majoritária e autoritariamente, tinha fechado as portas para a Justiça de Transição (Justiça do “acerto de contas”). Mas suas decisões já não são absolutas (quando há flagrante violação dos direitos humanos das vítimas).
Respeito aos direitos humanos das vítimas
Falar de violação de direitos humanos das vítimas (ou de seus familiares) num país tradicionalmente autoritário e antidemocrático parece assunto fora de moda. Mas não nos resta outra alternativa, se queremos denunciar uma vez mais essa tradicional simbiose entre o autoritarismo (militar ou não militar) e amplos setores do Poder Judiciário.
O Tribunal de Segurança Nacional, criado em 1937, durante o Estado Novo, que aceitava a presunção de culpabilidade do agente, salvo prova em sentido contrário, constitui expressão exuberante dessa conivência institucional.
O nazismo e o fascismo, na Alemanha e na Itália, tanto quanto os regimes autoritários no Brasil, nunca prescindiram da conivência do Poder Judiciário. Nisso reside a chamada “judicialização do autoritarismo” (ou da repressão), que achou seu ponto culminante não na edição da lei de anistia (lei de autoanistia, na verdade), senão na decisão do STF.
Conteúdo da decisão da CIDH
A Corte Interamericana condenou o Brasil pela detenção arbitrária, tortura e desaparecimento forçado de 62 pessoas, incluindo-se dentre elas membros do PCdoB e camponeses da região.
As operações arbitrárias do Exército brasileiro foram empreendidas entre 1972 e 1975, com o objetivo de erradicar a chamada “Guerrilha do Araguaia”. Ressalte-se que dos 62 desaparecidos no Araguaia (há quem fale num número maior), só foram encontrados quatro corpos, todos graças à ação de parentes.
Entendeu a Corte que o Brasil não empreendeu as ações necessárias para investigar, julgar e condenar os responsáveis pelo desaparecimento forçado das 62 vítimas e pela execução extrajudicial da Sra. Maria Lucia Petit da Silva, cujos restos mortais foram encontrados em 14 de maio de 1996.
Entendeu ainda a Corte que os recursos judiciais dos familiares das vítimas, com o objetivo a obter informação sobre os fatos, não foram efetivos para garantir-lhes o acesso à informação sobre a Guerrilha do Araguaia, além do que as medidas legislativas e administrativas adotadas pelo governo brasileiro (v.g., a promulgação da lei de anistia) restringiram indevidamente o direito de acesso à informação desses familiares.
As disposições da lei de anistia brasileira que impedem a investigação e sanção de graves violações de direitos humanos “são incompatíveis com a Convenção Americana, carecem de efeitos jurídicos e não podem seguir representando um obstáculo para a investigação dos fatos do presente caso, nem para a identificação e punição dos responsáveis, e tampouco podem ter igual ou semelhante impacto a respeito de outros casos de graves violações de direitos humanos consagrados na Convenção Americana ocorridos no Brasil”.
Obrigações do Brasil
Doravante o Brasil terá que eliminar todos os obstáculos jurídicos (como ,a lei de anistia) que durante anos impediram as vítimas do acesso à informação, à verdade e à Justiça.
Não se pode subtrair de nenhum povo o direito à memória e à justiça. Essa é a principal lição da decisão da Corte Interamericana que deve ser vista como legado humanista para as futuras gerações.
Deve o Estado brasileiro “conduzir eficazmente, perante a jurisdição ordinária, a investigação penal dos fatos do presente caso a fim de esclarecê-los, determinar as correspondentes responsabilidades penais e aplicar efetivamente as sanções e consequências que a lei preveja”, além de “realizar um ato público de reconhecimento de responsabilidade internacional a respeito dos fatos do presente caso”.
Outra determinação (contra o Brasil) é a necessidade de implementar em prazo razoável “um programa ou curso permanente e obrigatório sobre direitos humanos, dirigido a todos os níveis hierárquicos das Forças Armadas”.
Obrigação de cumprir as decisões da CIDH
O Brasil sequer pode cogitar da possibilidade de não cumprir as decisões da CIDH. Poderia sofrer sanções internacionais e ser excluído da OEA. O não cumprimento pelo Estado brasileiro da sentença da Corte Interamericana acarreta nova responsabilidade internacional ao país, a ensejar nova ação internacional na mesma Corte e nova condenação, e assim por diante.
A posição do Ministro Nelson Jobim no sentido de que o Brasil poderia deixar de cumprir as decisões da CIDH é totalmente equivocada. O STF nada mais pode fazer. As decisões da Corte devem ser cumpridas pelo Brasil necessariamente.
Luiz Flávio Gomes é doutor em Direito Penal pela Universidade Complutense de Madri, mestre em Direito Penal pela USP e diretor-presidente da Rede de Ensino LFG. Foi promotor de justiça (1980 a 1983), juiz de Direito (1983 a 1998) e advogado (1999 a 2001). Twitter: www.twitter.com/ProfessorLFG. Blog: www.blogdolfg.com.br.
Valerio de Oliveira Mazzuoli é pós-doutor em Direito pela Universidade de Lisboa. Doutor summa cum laude em Direito Internacional pela UFRGS. Mestre em Direito pela UNESP. Professor Adjunto de Direito Internacional Público e Direitos Humanos da UFMT. Professor da Rede LFG, em São Paulo. Advogado e consultor jurídico.